Quando terminou Ébola, aquele cartoon que mostra dois jornalistas a entrevistar o único doente branco numa enfermaria cheia de acamados negros, André Carrilho sentiu-se frustrado: "Não era nada disto", pensou. Mas já não tinha tempo de fazer melhor e o desenho foi publicado. Saiu no DN a 10 de agosto de 2014. Logo começou a ser partilhado nas redes sociais e em pouco tempo tornava-se um dos seus trabalhos mais conhecidos. Menos de um ano depois, vencia o World Press Cartoon. O ilustrador ainda hoje se ri com a história. "Tinha pensado em fazer muito mais camas e, depois, numa cama colocar um enxame de jornalistas, mas como não tinha tempo tive de fechar o plano. Se não tivesse sido viral se calhar não iria mais olhar para o desenho", admite..Ébola foi um dos 28 trabalhos que André Carrilho selecionou para a exposição Déjà Vu, que inaugurou na quinta-feira no Andar Nobre do Palácio de São Bento, em Lisboa. Déjà Vu é o nome da rubrica semanal que André Carrilho tem há já quase dez anos no DN, jornal que tem o exclusivo do seu trabalho para a impressa nacional: além da rubrica, que é um cartoon editorial, ele faz também ilustrações, caricaturas e capas especiais, e um pouco de tudo isso pode ser visto nesta exposição..Os temas do cartoon podem ser nacionais ou internacionais. Pode ser Trump ou o 25 de Abril, os refugiados, os taxistas ou outra coisa qualquer que esteja a marcar a atualidade. "Estou sempre atento, é a minha maneira de estar no mundo. E também é o meu temperamento, ser crítico e depois usar isso para o desenho", explica André Carrilho. "A minha ideia é fazer um comentário que não seja tão baseado em palavras, porque quero que pessoas de outros países vejam e percebam, tento evitar as legendas muito elevadas e tento ser mais universal." .Uma leitora americana disse-lhe uma vez que ficava maldisposta quando via os seus desenhos no jornal logo pela manhã, enquanto tomava café. Ele diz que não faz de propósito, mas é verdade que raramente recorre ao humor. Sem nunca abdicar da capacidade de colocar o dedo na ferida. "Há alturas em que me apetece fazer rir as pessoas, mas a maior parte das vezes parto de uma perspetiva de crítica social e de linguagem gráfica conceptual", explica..Ilustrar também é gerir a pressão.Devia ter uns 11 anos quando começou a interessar-se pela caricatura. "Durante as férias havia duas hipóteses: ou ia para as colónias, de que não gostava, ou então ficava em casa, mas tinha de me entreter com alguma coisa", lembra. Desenhava. E percebeu logo que tinha facilidade em fazer caricaturas da família..Aos 17 anos, viveu um ano em Macau. "Dois colegas meus estavam a mandar portfólios para os jornais e eu decidi mandar também. Fiz um portfólio de cartoons que eram muito inspirados no Quino, o autor da Mafalda, e de um outro brasileiro, Ziraldo. Fiz uma junção dos dois estilos e comecei a fazer cartoons de atualidade social, quotidiano. No jornal Ponto Final, gostaram e deram-me uma página regular." De regresso a Lisboa, em 1992, foi estudar Design Gráfico em Belas-Artes: "Eu era bom aluno a Geometria e aborrecia-me muito nas aulas, então com outro amigo inventámos uma coisa para nos entretermos que era o Kamasutra para obesos, que eram pessoas disformes a terem sexo. E depois houve um jornal satírico que só durou um ano, que era O Fiel Inimigo, que gostou dessa ideia e fazia uma página com isso." Não tardou até ser publicado no Público, no DN, n"O Independente..Em 2002, André Carrilho ganhou o prémio de caricatura atribuído pela norte-americana Society for News Design, que lhe abriu a porta para o mercado internacional. No seu ateliê com vista para o Tejo, em Lisboa, André Carrilho já fez trabalhos que têm aparecido em publicações tão diversas e prestigiadas como o The New York Times, New York Magazine, The New Yorker, Harper"s Magazine, Vanity Fair, Independent on Sunday e outros. E ganhou muitos outros prémios..André ainda se lembra do nervosismo que o assaltou da primeira vez que fez um desenho para o The New York Times. Entretanto, foi aprendendo a lidar com a pressão. Geralmente tem alguns dias para trabalhar, mas também pode acontecer fazerem-lhe uma encomenda para o próprio dia, como no dia do atentado no Charlie Hebdo. Quando tem falta de ideias vai correr um pouco ou, então, fica sentado no sofá naquele estado quase hipnótico de quem vai adormecer (e muitas vezes está tão cansado que adormece mesmo) até que de desperta e é muito provável que tenha alguma ideia. "Aprendi a gerir a cabeça e o tempo", explica o ilustrador de 44 anos. ."E também ao longo da minha carreira já tive bastantes reveses. O que uma pessoa aprende com os fracassos é que quando eles acontecem não é assim tão mau." Houve uma única vez em que teve de dizer ao diretor de arte do The New York Times que não conseguia fazer um trabalho: "Já tinha feito seis esboços e eles não aprovaram nenhum. Na altura, foi uma decisão difícil de tomar. Admitir que não conseguia fazer melhor do que aquilo. Mas foi importante passar por isso para perceber que não é o fim do mundo." .Ninguém gosta da sua caricatura?."Se tivermos de explicar uma caricatura é porque já falhou. Tem de ser reconhecível imediatamente e para a maior parte das pessoas", explica André Carrilho. Uma das coisas que aprendeu rapidamente é que é muito raro um caricaturado gostar da sua caricatura. "Eu percebi isso quando me caricaturaram a mim e achei que não estava nada parecido", conta. "Mas hoje olho para ela e acho que está. É preciso algum distanciamento." Porque a imagem que temos de nós próprios é muito diferente da imagem que os outros têm de nós. "Fico admirado quando alguém me pede a sua caricatura - implica que tem sentido de humor, mesmo que não ache parecido, acha piada; ou então um grande grau de autoconsciência." O caso que mais o encheu de orgulho foi o John le Carré, que viu a sua caricatura numa publicação suíça e lhe mandou uma mensagem a perguntar se poderia comprar o desenho. Carrilho ofereceu-lho. Na volta do correio, recebeu três livros autografados. "Sempre que tenho uma caricatura que gosto ou que me pedem eu envio o ficheiro às pessoas para imprimirem, porque acho que sem eles não teria feito o desenho, estou a ganhar dinheiro com a cara deles, é justo", diz. .Sempre com um estojo de lápis e canetas na mala e um bloco de papel à mão, André desenha em qualquer lado. Ultimamente, mantém uma espécie de diário com textos e desenhos do quotidiano e dos filhos. São desenhos completamente diferentes daqueles que nos habituámos a ver dele. "Talvez um dia os mostre.". Exposição Déjà Vu com ilustrações de André Carrilho publicadas no DN Andar Nobre do Palácio de São Bento, Lisboa Até 2 de novembro Dias úteis 10.00-12.30 e 14.30-17.00 Entrada gratuita
Quando terminou Ébola, aquele cartoon que mostra dois jornalistas a entrevistar o único doente branco numa enfermaria cheia de acamados negros, André Carrilho sentiu-se frustrado: "Não era nada disto", pensou. Mas já não tinha tempo de fazer melhor e o desenho foi publicado. Saiu no DN a 10 de agosto de 2014. Logo começou a ser partilhado nas redes sociais e em pouco tempo tornava-se um dos seus trabalhos mais conhecidos. Menos de um ano depois, vencia o World Press Cartoon. O ilustrador ainda hoje se ri com a história. "Tinha pensado em fazer muito mais camas e, depois, numa cama colocar um enxame de jornalistas, mas como não tinha tempo tive de fechar o plano. Se não tivesse sido viral se calhar não iria mais olhar para o desenho", admite..Ébola foi um dos 28 trabalhos que André Carrilho selecionou para a exposição Déjà Vu, que inaugurou na quinta-feira no Andar Nobre do Palácio de São Bento, em Lisboa. Déjà Vu é o nome da rubrica semanal que André Carrilho tem há já quase dez anos no DN, jornal que tem o exclusivo do seu trabalho para a impressa nacional: além da rubrica, que é um cartoon editorial, ele faz também ilustrações, caricaturas e capas especiais, e um pouco de tudo isso pode ser visto nesta exposição..Os temas do cartoon podem ser nacionais ou internacionais. Pode ser Trump ou o 25 de Abril, os refugiados, os taxistas ou outra coisa qualquer que esteja a marcar a atualidade. "Estou sempre atento, é a minha maneira de estar no mundo. E também é o meu temperamento, ser crítico e depois usar isso para o desenho", explica André Carrilho. "A minha ideia é fazer um comentário que não seja tão baseado em palavras, porque quero que pessoas de outros países vejam e percebam, tento evitar as legendas muito elevadas e tento ser mais universal." .Uma leitora americana disse-lhe uma vez que ficava maldisposta quando via os seus desenhos no jornal logo pela manhã, enquanto tomava café. Ele diz que não faz de propósito, mas é verdade que raramente recorre ao humor. Sem nunca abdicar da capacidade de colocar o dedo na ferida. "Há alturas em que me apetece fazer rir as pessoas, mas a maior parte das vezes parto de uma perspetiva de crítica social e de linguagem gráfica conceptual", explica..Ilustrar também é gerir a pressão.Devia ter uns 11 anos quando começou a interessar-se pela caricatura. "Durante as férias havia duas hipóteses: ou ia para as colónias, de que não gostava, ou então ficava em casa, mas tinha de me entreter com alguma coisa", lembra. Desenhava. E percebeu logo que tinha facilidade em fazer caricaturas da família..Aos 17 anos, viveu um ano em Macau. "Dois colegas meus estavam a mandar portfólios para os jornais e eu decidi mandar também. Fiz um portfólio de cartoons que eram muito inspirados no Quino, o autor da Mafalda, e de um outro brasileiro, Ziraldo. Fiz uma junção dos dois estilos e comecei a fazer cartoons de atualidade social, quotidiano. No jornal Ponto Final, gostaram e deram-me uma página regular." De regresso a Lisboa, em 1992, foi estudar Design Gráfico em Belas-Artes: "Eu era bom aluno a Geometria e aborrecia-me muito nas aulas, então com outro amigo inventámos uma coisa para nos entretermos que era o Kamasutra para obesos, que eram pessoas disformes a terem sexo. E depois houve um jornal satírico que só durou um ano, que era O Fiel Inimigo, que gostou dessa ideia e fazia uma página com isso." Não tardou até ser publicado no Público, no DN, n"O Independente..Em 2002, André Carrilho ganhou o prémio de caricatura atribuído pela norte-americana Society for News Design, que lhe abriu a porta para o mercado internacional. No seu ateliê com vista para o Tejo, em Lisboa, André Carrilho já fez trabalhos que têm aparecido em publicações tão diversas e prestigiadas como o The New York Times, New York Magazine, The New Yorker, Harper"s Magazine, Vanity Fair, Independent on Sunday e outros. E ganhou muitos outros prémios..André ainda se lembra do nervosismo que o assaltou da primeira vez que fez um desenho para o The New York Times. Entretanto, foi aprendendo a lidar com a pressão. Geralmente tem alguns dias para trabalhar, mas também pode acontecer fazerem-lhe uma encomenda para o próprio dia, como no dia do atentado no Charlie Hebdo. Quando tem falta de ideias vai correr um pouco ou, então, fica sentado no sofá naquele estado quase hipnótico de quem vai adormecer (e muitas vezes está tão cansado que adormece mesmo) até que de desperta e é muito provável que tenha alguma ideia. "Aprendi a gerir a cabeça e o tempo", explica o ilustrador de 44 anos. ."E também ao longo da minha carreira já tive bastantes reveses. O que uma pessoa aprende com os fracassos é que quando eles acontecem não é assim tão mau." Houve uma única vez em que teve de dizer ao diretor de arte do The New York Times que não conseguia fazer um trabalho: "Já tinha feito seis esboços e eles não aprovaram nenhum. Na altura, foi uma decisão difícil de tomar. Admitir que não conseguia fazer melhor do que aquilo. Mas foi importante passar por isso para perceber que não é o fim do mundo." .Ninguém gosta da sua caricatura?."Se tivermos de explicar uma caricatura é porque já falhou. Tem de ser reconhecível imediatamente e para a maior parte das pessoas", explica André Carrilho. Uma das coisas que aprendeu rapidamente é que é muito raro um caricaturado gostar da sua caricatura. "Eu percebi isso quando me caricaturaram a mim e achei que não estava nada parecido", conta. "Mas hoje olho para ela e acho que está. É preciso algum distanciamento." Porque a imagem que temos de nós próprios é muito diferente da imagem que os outros têm de nós. "Fico admirado quando alguém me pede a sua caricatura - implica que tem sentido de humor, mesmo que não ache parecido, acha piada; ou então um grande grau de autoconsciência." O caso que mais o encheu de orgulho foi o John le Carré, que viu a sua caricatura numa publicação suíça e lhe mandou uma mensagem a perguntar se poderia comprar o desenho. Carrilho ofereceu-lho. Na volta do correio, recebeu três livros autografados. "Sempre que tenho uma caricatura que gosto ou que me pedem eu envio o ficheiro às pessoas para imprimirem, porque acho que sem eles não teria feito o desenho, estou a ganhar dinheiro com a cara deles, é justo", diz. .Sempre com um estojo de lápis e canetas na mala e um bloco de papel à mão, André desenha em qualquer lado. Ultimamente, mantém uma espécie de diário com textos e desenhos do quotidiano e dos filhos. São desenhos completamente diferentes daqueles que nos habituámos a ver dele. "Talvez um dia os mostre.". Exposição Déjà Vu com ilustrações de André Carrilho publicadas no DN Andar Nobre do Palácio de São Bento, Lisboa Até 2 de novembro Dias úteis 10.00-12.30 e 14.30-17.00 Entrada gratuita