Gonçalo Lobo Xavier: "Ficamos muito felizes se conseguirmos manter este nível de emprego em 2021" 

O líder da APED defende que definir já o teletrabalho até ao final do ano "é meterem-se demais na vida das empresas". Quer autotestes à venda nos supers. E diz que é preciso valorizar a carreira na distribuição.
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A Associação de Empresas de Distribuição (APED) tem 165 associados que representam mais de 4 mil lojas e 130 mil trabalhadores. No ano passado, as vendas caíram 1,5%... mas a crise atingiu de forma desigual os vários setores: enquanto a roupa recuou mais de 30%, o retalho alimentar subiu 8%. O diretor-geral da APED faz um retrato dos efeitos da pandemia.

Nota algum impacto destas duas semanas de desconfinamento?
Já se começa a notar alguma animação, ainda que residual. Esta possibilidade de venda ao postigo e o click and collect - por que a APED se vinha batendo junto do Ministério da Economia (ME), porque funciona do ponto de vista da segurança - ajuda sobretudo o retalho especializado, que foi muito fustigado. Mas ainda é muito residual. Estamos convictos que com os números da saúde pública a melhorarem significativamente, há condições para começar um desconfinamento mais sério que permita outro tipo de frequência nas lojas físicas.

Que perspetivas tem para 2021?
Não posso falar de perspetivas sem uma referência ao ano que passou, que foi extremamente difícil, com a faturação do setor a cair 1,5% mas grande preocupação quanto ao retalho especializado. Moda, têxtil, calçado, desporto, brinquedos, mobiliário tiveram uma queda muito significativa de quase 18%. Que fique claro: nós sempre estivemos ao lado do governo na promoção da saúde pública. No caso do retalho alimentar estivemos sempre abertos para que nada faltasse às famílias - e aí até houve um ligeiro crescimento. Mas temos de acelerar este desconfinamento. E isso não é pôr em causa a saúde pública, há medidas que podem permitir a recuperação dos lojistas e da economia, e deste setor em concreto, que não põem em causa a saúde.

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Acredita que vamos neste ano recuperar níveis pré-pandemia?
É muito difícil. Sejamos realistas: há um conjunto de setores que impactaram... não apenas os portugueses terem confinado mas também o efeito do turismo a cair a pique. Já tínhamos níveis extremamente importantes para o setor - no alimentar mas sobretudo no especializado. Agora, com a perspetiva de termos de aguentar mais uns longos meses até termos o nível de turistas de volta, as nossas perspetivas não são otimistas relativamente a números de 2019. Ainda vamos ter de passar um bom bocado até à normalização da economia. Mas temos esperança que ao menos o mercado interno possa ser estimulado. Há que terminar certas medidas que não contribuem para a saúde pública e põem em causa a economia.

Por exemplo?
Continuar a ter o rácio de cinco pessoas por 100m2 em todos os espaços comerciais é uma teimosia sem paralelo na Europa. Com os atuais números da pandemia, era um sinal importante.

Acabar ou alargar esses limites?
Não podemos terminar. Continuamos a ter medidas muito cautelosas - estamos preocupados com colaboradores e consumidores. Sabemos que as regras do distanciamento social nas lojas, o manuseamento de álcoolgel e o uso de máscara vieram para ficar e acreditamos que será por muito mais do que seis meses ou um ano. Mas o rácio não pode ser tão baixo, porque em alturas de maior fluxo, sobretudo ao fim de semana há filas à porta com as lojas vazias.

Os horários de fim de semana deviam também ser alargados?
Temos dito à Direção-Geral da Saúde (DGS) e ao ME que essa é uma má medida para a saúde pública, porque concentra as pessoas num período mais curto de tempo. Assistimos no Natal, e até depois, nos fins de semana, a casos de lojas com dezenas de pessoas à porta. Todas as lojas se adaptaram do ponto de vista da sua estrutura e logística, portanto há segurança. Não é preciso rácios tão baixos - nas filas é que não podemos responsabilizar-nos pela segurança das pessoas.

E faz sentido, dadas essas adaptações todas que foram feitas, manter ainda lojas fechadas?
Nós sempre dissemos e nos batemos por isto: não é nos espaços comerciais que as pessoas se contagiam. Houve um certo exagero, sobretudo na manutenção durante tanto tempo dos espaços fechados. Há soluções que não põem em causa a saúde pública e podiam ter sido exploradas. Mesmo países europeus com números de saúde mais complexos não foram tão longe. Nós temos acatado todas as orientações da DGS e do governo, até antecipámos muitas delas porque fazemos benchmark com os nossos parceiros do EuroCommerce, falamos longamente para saber o que se passa em países que anteciparam experiências e trouxemos o que de melhor há na gestão da saúde pública. Houve exagero e já se podia ter aliviado muitas destas regras. Por exemplo, a proibição da venda de álcool depois das 20.00 é inexplicável do ponto de vista científico, da saúde pública e da razoabilidade. Parece que alguém se esqueceu desta medida.

As vendas online não chegam para compensar as perdas?
Não. Houve uma adesão dos portugueses às compras online - isso é interessante e veio para ficar, muitos entenderam que era uma solução credível, rápida, eficaz e segura. Mas se no alimentar subiu 3% e no desporto, moda, etc. cerca de 15%, isso não chega para cobrir as perdas registadas ao longo do ano.

Para além das vendas online, houve mais alterações nos hábitos dos consumidores?
Os portugueses tiveram um comportamento muito interessante. O nosso barómetro espelha o confinamento: mais computadores, impressoras, máquinas de café.

Mas isso compra-se uma vez.
Sim, mas esta área cresceu 30% - também para o ensino à distância, as famílias tiveram de apetrechar-se com equipamentos. E no alimentar, começaram a valorizar muito mais os produtos nacionais. Continuamos a manter em 2021 níveis de procura de produtos de alta qualidade da dieta mediterrânica e isso é uma diferença muito interessante, com impacto na produção agrícola nacional - o que é assinalado pelos agricultores. Nós temos esta ligação umbilical à produção nacional e à indústria nacional alimentar e isso foi motivo de agrado, porque conseguimos escoar muita produção que, com cafés, hotéis e restaurantes fechados tanto tempo, podiam estragar-se.

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O setor perdeu empregos?
Não houve perda líquida, mas vínhamos há três anos com criação líquida de empregos e agora isso parou - até início de 2020, criámos 25 mil postos de trabalho. E houve insígnias que tiveram de ajustar colaboradores nos seus negócios.

Para 2021 que expectativa tem?
Nós representamos 130 mil colaboradores - 90 mil no alimentar e 40 mil nos outros negócios - e temos de ser realistas: ficaremos muito contentes se conseguirmos manter este nível de emprego. Os desafios são enormes... Nos associados do retalho especializado, foi muito tempo de lojas fechadas e isso cria incerteza e insegurança no investimento. Há ainda muitos com planos de expansão que, não tendo sido cancelados, estão à espera de perceber quais são as tendências. É preciso que haja um certo estímulo na economia - e não estamos a falar apenas de injeções de capital. É claro que as empresas precisam de estar capitalizadas, há que injetar capital nas empresas, conforme a CIP tem vindo a referir, para elas corrigirem balanços e terem músculo para continuar a investir e manter empregos. Mas temos dificuldade em entender certas medidas. As empresas precisam de ter alguma orientação e gerir expectativas. E se quer que lhe diga, anunciar já que o teletrabalho se vai manter regra até ao final do ano parece-nos excessivo. Não pomos em causa o teletrabalho, foi uma ferramenta muito interessante no seu momento...

Mas é extemporâneo prolongar sem conhecer a realidade.
É preciso desconfinar e que as empresas retomem ritmos de trabalho sem pôr em causa a saúde pública. Definir já que o teletrabalho é regra até ao final do ano é meterem-se demais na vida das empresas. Foi uma solução interessante mas também tem perigos e não é para todas as áreas de negócio.

Nem é imposto em todas...
Com certeza, nas lojas não é possível, mas nos escritórios que lhes dão suporte pode haver essa expectativa. E aqui nem falo na distribuição, nós falamos com outros setores importantíssimos que nos dizem que passar esta mensagem é errado, é contraproducente, não permite reestabilizar equipas. O teletrabalho faz perder algo do encontro entre colaboradores, do networking, põe em causa alguma produtividade e não pode ser solução por decreto e muito extensa.

E desincentiva o consumo.
Naturalmente, tem um impacto tremendo. Eu sinto as dores dos lojistas que, sem pessoas no escritório, servem menos cafés...

Mas sente alegria no alimentar.
O retalho alimentar tem tido um crescimento enorme, é evidente que a faturação aumenta, mas continua a não haver rotação interessante em certas áreas. O alimentar é um negócio de volume e o que tem havido é uma subida no ticket por pessoa, que teve reflexo na faturação, mas não se pense que esse aumento se traduz em subida de resultados, porque foi preciso investir avultadamente na segurança dos espaços, na logística, na estrutura em EPI, álcoolgel, etc. Ficamos contentes com mais faturação, mas isso, do ponto de vista do negócio, não faz um ano brilhante.

Ainda assim, têm aberto lojas no alimentar. Essa expansão é adequada à nossa realidade?
Se compararmos com os rácios de outros países, o número de lojas por habitante aqui ainda está longe da média europeia. Pode ser surpreendente, mas vemos todos os anos chegarem investidores e insígnias europeias a olhar para Portugal como um mercado interessante. O mercado português está longe de estabilizado, há espaço para crescer.

O que vai acontecer, no resto do retalho, aos artigos que não se venderam durante o último ano?
As cadeias internacionais conseguem uma logística mais adequada - o que aqui não vendem tentam vender noutras partes do globo -, mas não é solução para tudo. No caso da moda, há um sistema bem gerido com as estações no hemisfério Sul e Norte, mas há muito stock parado e muitos associados a usar saldos e promoções para tentar escoar produto. O timing de janeiro e fevereiro foi desastroso também por isso - é a altura ideal para escoar em saldos e caiu tudo por terra com este confinamento.

A evidência de que o mundo está todo ligado teve há dias um episódio caricato: o entupimento do Canal do Suez durante quase uma semana. Isso terá efeitos para Portugal?
Há questões transversais - o preço do petróleo, por exemplo, mas não sei como pode ter impacto que o faça subir ainda mais em Portugal. Todo o mundo vai sofrer um pouco com atrasos, a indústria automóvel é o exemplo mais paradigmático, mas as nossas cadeias são mais de proximidade - temos muita relação com Espanha, França e Alemanha, também os nossos mercados preferenciais de exportação -, por isso diria que no nosso setor não vamos sofrer muito. A indústria poderá sofrer um pouco, nós não.

E não poder anunciar essas promoções também traz perda?
Acatámos essa medida, mas achamos que é de uma eficácia no mínimo duvidosa. É uma medida um pouco populista. Não nos parece que as pessoas nesta fase estejam tão sensíveis à comunicação da promoção que corram às lojas. Desde logo porque há limite do número de pessoas em loja. Portanto é um contrassenso, com impactos nos nossos parceiros de publicidade, os media.

As pessoas estão a optar pelo mais barato também no alimentar. Há risco de a distribuição começar a esmagar margens junto dos produtores?
Há certos mitos que têm de ser clarificados: um estudo de 2019 do EuroCommerce refere que a margem na distribuição está nos 2% ou 3%.

E as dos produtores?
Tem de lhes perguntar a eles. Aqui há produção, indústria e distribuição e só posso responder por esta - e são 2% ou 3%. É um mito dizer que a distribuição alimentar tem uma vantagem grande. É evidente que a discussão é longa, nós queremos sempre comprar bem à produção e à indústria, mas hoje o negócio do alimentar ganha-se não apenas aí, mas em todos os elos da cadeia: logística, rotatividade dos produtos, armazenamento...

O governo anunciou nesta semana a venda de autotestes para maior controlo da pandemia. Faz sentido que se vendam em supermercados?
Era desejável, sim. Já temos pelo menos dois associados nas parafarmácias a disponibilizá-los e é o que vemos noutros países - a Alemanha é um caso paradigmático. Parece-nos interessante disponibilizarmos ao consumidor esse tipo de testes. No início da pandemia, pediram-nos ajuda para disponibilizar máscaras, álcoolgel outros EPI. Seria mais um serviço. Não se pense que este tipo de negócio é para aumentar resultados; o que queremos é disponibilizar produto às pessoas.

O contrato coletivo de trabalho do setor está há anos em discussão. Teve algum avanço?
No primeiro trimestre de 2020 tivemos um avanço brutal e estivemos muito perto de um acordo histórico. Morremos na praia... Fizemos um esforço muito significativo e percebemos as razões dos sindicatos, mesmo que às vezes nos pareçam muito bloqueados do ponto de vista ideológico. Agora estamos numa fase interessante, temos reunião para a semana e vamos discutir uma nova proposta.

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Não seria uma forma de reconhecer o trabalho na linha da frente, mais do que prémios extraordinários?
Claramente. Temos de valorizar cada vez mais a carreira na distribuição - supers e outras áreas. Trabalhar numa carreira para a distribuição é hoje complexo, interessante e desafiante, a digitalização de processos obriga a outro tipo de competências e temos de apostar mais na formação das pessoas, explorar a questão interessantíssima de oferecer aos colaboradores diversas possibilidades de carreira dentro das insígnias. Numa altura destas, em que tivemos de nos reinventar e dotar colaboradores de energia extra, seria extraordinário além do que se fez com os prémios, conseguirmos ter a estabilização de um contrato coletivo de trabalho que responda aos anseios dos trabalhadores e permita às empresas mantê-los. Porque é isso que queremos, manter os níveis de emprego - e, se possível, crescer.

Com Ana Marcela

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