"Golda ficava muito zangada quando a chamavam o Único Homem no governo"

Assinalam-se hoje 75 anos sobre a Declaração de Independência de Israel, a 14 de maio de 1948. Figura emblemática de todo o processo foi Golda Meir, mais tarde primeira-ministra. Meron Medzini, académico que foi amigo e porta-voz e escreveu sobre ela uma biografia, explica o percurso desta mulher extraordinária, cuja imagem junto dos israelitas, sobretudo o desempenho na Guerra do Yom Kippur, pode vir a ser revista em alta graças a filme prestes a sair.
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Golda Meir foi uma mãe fundadora entre os chamados pais fundadores de Israel. É esta a maior prova do excecionalismo desta mulher?
Quando se trata de igualdade e direitos das mulheres na política israelita, Golda Meir foi a exceção e não a regra. Ela própria nunca se interessou em garantir papéis para mulheres. Não havia mulheres nos seus gabinetes quando ela era primeira-ministra. Havia três mulheres embaixadoras quando foi ministra dos Negócios Estrangeiros. Embora tenha começado a sua vida política no Conselho Feminino dos Trabalhadores no final da década de 1920, ela viu isso apenas como um trampolim para outra carreira, superior e geralmente dominada por homens. Até ao momento, ela continua a ser a única mulher primeira-ministra de Israel, mas sabia o que significava ser mãe solteira, o que significava ser pobre, como criar filhos. Acima de tudo, na sua ordem de prioridades, o movimento socialista, o seu próprio partido e mais tarde o Estado de Israel tiveram precedência sobre a família. Ela costumava viajar para o exterior por muitos dias deixando para trás os dois filhos pequenos ao cuidado da sua irmã mais velha, algo que causava muita tensão entre ela e a irmã. Golda Meir deixou a sua marca nas futuras gerações de mulheres israelitas quando se tratava de legislar leis do trabalho. Quando era ministra do Trabalho e da Construção (1949-1956), ela foi responsável por passar pelo Knesset uma série de leis que tratavam dos direitos das mulheres trabalhadoras, jornada de trabalho, dias de descanso, Previdência Social, licença de maternidade remunerada, subsídios especiais para bebés recém-nascidos. Estas foram provavelmente as suas maiores contribuições para a sociedade israelita. Hoje em dia, há muito mais mulheres no governo israelita, uma delas chegou ao lugar de ministra dos Negócios Estrangeiros, muitas são diretoras-gerais de gabinetes, há muito mais mulheres embaixadoras, mas essas mudanças não podem ser atribuídas a Golda Meir. Ela não era feminista e opôs-se à chamada Libertação das Mulheres. Ela geralmente ficava muito zangada quando as pessoas a chamavam o Único Homem no governo.

Nascida no Império Russo, criada nos Estados Unidos, emigrante na chamada Terra Santa enquanto jovem adulta. Ela era uma verdadeira crente no sionismo?
Golda Meir emigrou para a Palestina (hoje Israel) em 1921 por duas razões principais. A primeira foi a sua crença no ideal sionista de criar uma pátria judaica nacional e, mais tarde, um Estado para os judeus. Ela juntou-se a um movimento operário judeu na América quando tinha 12 anos e sabia muito sobre a ideologia sionista, que combinou com o socialismo. Apesar de se lembrar do seu pai a trancar as portas de casa para proteger a família dos pogroms em Kiev, ela nunca encontrou antissemitismo na América, por isso o antissemitismo não foi o motivo da sua ida para Israel. O principal motivo tinha que ver com a sua visão das perspetivas que ela tinha nos Estados Unidos pouco antes da Primeira Guerra Mundial. As mulheres ainda não tinham direito ao voto, as possibilidades para uma jovem judia na América da época eram muito limitadas - podia ser enfermeira, professora, costureira, vendedora num grande armazém, escriturária, estenógrafa, até ao momento em que conheceria o homem que seria seu marido, assentaria e constituiria família. Sendo muito ambiciosa e rebelde desde tenra idade, ela sentiu que as suas perspetivas na América eram muito limitadas. Portanto, decidiu imigrar para Israel, onde faria parte da fundação de um futuro Estado judeu e, ao fazer isso, também avançaria na sua própria carreira. Conseguiu isso e muito mais. Ela ocupou muitos dos cargos importantes que o seu movimento, o seu partido, o seu país poderiam oferecer, acabando por chegar ao topo - primeira-ministra do Estado de Israel.

Quão difíceis foram para Golda Meir os primeiros anos no futuro Estado de Israel? Enfrentou a pobreza, as dificuldades em aprender hebraico, o choque com o marido, as dificuldades em conciliar a carreira política com cuidar dos filhos.
O seu futuro marido, Morris Myerson, como ela um imigrante da Europa de Leste, um pintor de paredes que conheceu em Denver, era um homem autodidata e abriu-lhe as portas no que respeitava a literatura, poesia, artes e música, mas ele não era um sionista e não achava que os judeus deveriam ter uma nação própria. Ela condicionou o casamento deles a duas coisas - emigrar para Israel e estabelecerem-se num kibutz, um colonato coletivo. Ele pensou que ela acabaria por mudar de ideias, ela pensou que ele iria acostumar-se ao novo ambiente. Ambos estavam errados. Ele concordou em emigrar com ela e tentar, mas a vida num kibutz no vale de Jezreel de 1921 a 1924 foi infeliz para ele que odiava o calor, a sujidade, o trabalho. Ela floresceu e começou a desempenhar um papel no Movimento Trabalhista, onde chamou a atenção dos líderes da comunidade judaica, entre eles David Ben-Gurion, Berl Katznelson, David Remez e Zalman Shazar. Eles tornaram-se os seus mentores e impulsionaram a carreira dela. Depois de dois anos, o marido ameaçou-a dizendo que, se não saíssem do kibutz, ele voltaria para a América. Ela concordou e o casal mudou-se para Jerusalém numa tentativa de salvar o casamento, tiveram dois filhos que ela criou sozinha em Jerusalém. Durante três anos ela experimentou a pobreza, a solidão, a infelicidade e, acima de tudo, perguntou-se o que tinha acontecido com os seus primeiros sonhos. O casal nunca se divorciou e eles viveram separados e mantiveram relações amigáveis enquanto ele ajudava a criar os dois filhos. A experiência em Jerusalém, os anos de pobreza e solidão, ensinaram a Golda uma lição de vida - é preciso lutar, é preciso arriscar e nunca se deve desistir dos seus sonhos e ideologia.

Como descreve a relação com o primeiro-ministro David Ben-Gurion?
Durante anos, ela foi uma das seguidoras e aliadas mais devotadas de Ben-Gurion. Ele admirava a sua capacidade de conseguir fazer as coisas, de cumprir missões difíceis, como arrecadar 100 milhões de dólares para Israel durante a Guerra da Independência, que pagaram pelas armas da Checoslováquia que permitiram a Israel sobreviver e vencer a guerra. Ele queria nomeá-la para o seu primeiro gabinete, mas alguns dos seus colegas opuseram-se e Golda Meir foi enviada para ser embaixadora em Moscovo, cargo que ocupou durante oito meses. Ben-Gurion prometeu-lhe um cargo no governo e ela tornou-se ministra do Trabalho e da Construção de 1949 a 1956, responsável por encontrar empregos e habitação para as massas de novos imigrantes que chegaram a Israel após a independência. Foi então nomeada ministra dos Negócios Estrangeiros, mas eles desentenderam-se quando Ben-Gurion se manifestou abertamente contra o homem que ele próprio nomeou como sucessor, Levi Eshkol , e em 1965 dividiu o Partido Trabalhista que tinha fundado em 1930. Ela chamou-o o maior judeu vivo do nosso tempo e ele também a elogiou pelas suas muitas conquistas. Finalmente fizeram as pazes quando Golda Meir se tornou primeira-ministra e ele se aposentou. A certa altura, quando estavam distantes, ela disse: "Não vou deixar Ben-Gurion estragar Ben-Gurion para mim". Ele morreu, simbolicamente, várias semanas após a Guerra do Yom Kippur.

Qual a importância de Golda Meir na independência de Israel e durante os primeiros anos da nação?
Durante os primeiros 25 anos de independência de Israel, ela desempenhou papéis importantes. O primeiro foi arrecadar 100 milhões de dólares na América para comprar armas. O segundo foi estabelecer contacto com os judeus russos e dar-lhes esperança de que acabariam por poder deixar a Rússia e ir para Israel (o que aconteceu 40 anos depois). Como ministra do Trabalho e da Construção, ela supervisionou o esforço de construção em massa para abrigar mais de um milhão e meio de judeus que emigraram para Israel durante os primeiros 25 anos. Golda Meir também foi fundamental para encontrar emprego para eles. Durante esses anos, ela foi responsável pelas leis trabalhistas de Israel e, acima de tudo, pela criação da Segurança Social. Como ministra dos Negócios Estrangeiros, ela foi responsável pela abertura de Israel às nações africanas recém-independentes, quando Israel tinha mais de 27 embaixadas no continente africano. Desempenhou também um papel na criação de laços entre Israel e a recém-criada União Europeia quando Israel se tornou um Estado Associado. Golda Meir também desempenhou um papel importante na melhoria dos laços com os Estados Unidos e, durante o seu mandato como ministra dos Negócios Estrangeiros, os americanos tornaram-se os principais fornecedores de armas a Israel, substituindo a França.

Foi uma boa ministra dos Negócios Estrangeiros?
Golda Meir foi uma excelente ministra dos Negócios Estrangeiros. A sua principal conquista foi a abertura a África. Ela entendeu que Israel poderia então oferecer às nações africanas recém-estabelecidas a tão necessária ajuda técnica e estabeleceu o Departamento de Cooperação Internacional (MASHAV). Visitou muitas nações africanas e foi homenageada por muitas delas; levou a cabo uma política combinada humanitário-realista. Humanitária no que respeitava a ajudar as nações pobres do continente negro a dar os seus primeiros passos como nações independentes, realista na expectativa de que apoiariam Israel nas Nações Unidas e outras organizações internacionais. Ela também foi responsável por criar laços especiais com o presidente John F. Kennedy e o seu sucessor Lyndon Johnson e provocar uma mudança na decisão dos Estados Unidos de se tornar um importante fornecedor de armas a Israel. Criou também organizações israelitas especiais para garantir que os judeus russos permanecessem judeus e nunca perdessem a esperança de finalmente emigrar para Israel. Isso acabou por acontecer a partir de 1989, quando 1,5 milhões de judeus russos emigraram para Israel.

Porque é ainda tão criticada pela Guerra do Yom Kippur, que aconteceu quando era primeira-ministra?
Muitos israelitas ainda a consideram responsável por Israel ter sido apanhado de surpresa e despreparado na Guerra do Yom Kippur. Como ela insistia em manter o sigilo, poucos israelitas sabiam dos seus esforços para evitar a guerra ou mesmo de como ela a conduzia como chefe de um pequeno gabinete de guerra presidido por si. Como alguém que a viu praticamente todos os dias daquela guerra, posso testemunhar que ela conduziu a guerra de maneira fria, eficiente e atenta. Golda Meir entendeu as implicações militares, políticas e sociais da guerra e conseguiu manter a amizade e o apoio dos Estados Unidos. Os seus instintos faziam-na sentir que Israel estava prestes a enfrentar uma guerra, enquanto a alta liderança do exército israelita sentia que havia uma baixa probabilidade de uma guerra rebentar. Ela cedeu à liderança militar e nunca se perdoou por isso. Assumiu a responsabilidade dizendo que tinha acontecido sob a sua supervisão e, portanto, ela era a responsável. Nos últimos anos, com a abertura dos arquivos israelitas 50 anos após a Guerra do Yom Kippur, vê-se agora que a sua política antes da guerra era a correta e hoje em dia mais israelitas tendem a vê-la de uma maneira totalmente diferente.

Como se explica o contínuo choque com Shimon Peres e a grande amizade com Yitzhal Rabin?
O principal motivo do seu confronto com Shimon Peres teve que ver com a questão de quem sucederia a Ben-Gurion: seria a liderança de segunda linha composta por Levi Eshkol, Golda Meir, Zalman Aranne, Pinchas Sapir e Abba Eban ou seria a próxima geração de líderes, entre eles Moshe Dayan, Shimon Peres, Yitzhak Navon e Teddy Koillek. Estes eram os fazedores, enquanto a geração mais velha era mais a dos ideólogos. Houve também uma discussão sobre jurisdição, Golda Meir sentiu que o Ministério da Defesa sob Peres estava a interferir no trabalho do seu Ministério dos Negócios Estrangeiros, especialmente quando se tratava das relações com a França e a Alemanha. Ela acusou frequentemente Peres de minar a sua posição na Europa e em várias ocasiões ameaçou renunciar. Quando se tornou primeira-ministra, Golda Meir recusou-se inicialmente a nomear Peres como ministro no seu governo, mas sob a ameaça de Dayan, de que renunciaria a menos que Peres se tornasse ministro, ela concordou, mas deu-lhe cargos menores, como ministro dos Correios e depois dos Transportes. Golda Meir conhecia Yitzhak Rabin desde a infância, pois trabalhava no mesmo escritório em Jerusalém que a mãe dele. Ela admirava toda a geração Palmach de jovens israelitas nativos que foram uma unidade-chave na luta contra os britânicos e na Guerra da Independência. Trabalhou muito de perto com ele quando Rabin era chefe do Estado-Maior das Forças de Defesa de Israel e, mais tarde, quando ele foi embaixador de Israel em Washington de 1968 a 1973. Quando era primeira-ministra, ela contornou o ministro dos Negócios Estrangeiros Abba Eban e trabalhou diretamente com o governo Nixon através do embaixador Rabin. Em 1974, apoiou a candidatura de Rabin para a suceder contra o seu rival Shimon Peres.

Qual era a opinião de Golda Meir sobre os palestinianos e a vontade destes de terem também um Estado?
Durante muitos anos, Golda Meir estava convencida de que não existia povo palestiniano e, portanto, não tinham direito a um Estado na Terra de Israel. Foi apenas em abril de 1973 que ela finalmente mudou de ideia e aceitou a existência de um nacionalismo palestiniano separado. A sua principal preocupação era conseguir a paz com os países árabes vizinhos, principalmente o Egito. Ela também percebeu que os palestinianos representam uma séria ameaça à existência do Reino Hachemita da Jordânia e, portanto, minimizou o nacionalismo palestiniano. Quando percebeu que em algum momento Israel teria que lidar com o nacionalismo palestiniano, a Guerra do Yom Kippur começou e a sua principal preocupação era chegar a uma série de entendimentos com o Egito. Ela concordava com o rei Hussein da Jordânia que a Organização de Libertação da Palestina sob Yasser Arafat representava um grande perigo para a existência da Jordânia.

Pode explicar a sua relação pessoal, e da sua família, com a mulher que foi primeira-ministra de Israel?
A minha mãe conheceu Golda Mabovich no 2.º ano da escola pública número 4 em Milwaukee, Wisconsin, nos Estados Unidos, em 1906. As suas famílias tinham acabado de emigrar da Europa de Leste e não falavam inglês, apenas iídiche. Elas permaneceram amigas muito próximas até Golda morrer setenta e dois anos depois, em 1978. Para mim, ela era uma espécie de tia honorária que esteve no meu casamento e me nomeou seu porta-voz em junho de 1973. Conhecia os meus filhos. Eu conhecia bem os dela e ainda mantenho contacto próximo com os seus netos. Mais tarde, isso levou-me a escrever uma biografia política completa de Golda (Golda Meir, De Gruyter, 2009, 753 páginas). Esse trabalho ganhou o Prémio do primeiro-ministro de Israel, que me foi concedido pelo presidente Shimon Peres e pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu em março de 2010.

Pensa que o filme sobre Golda Meir irá transmitir uma imagem mais positiva dela junto dos israelitas?
O novo filme chamado Golda, com a famosa atriz inglesa Helen Mirren a fazer o papel de Golda Meir durante a Guerra do Yom Kippur melhorará certamente a sua imagem tanto em Israel como no exterior. Embora lide apenas com as duas semanas da Guerra do Yom Kippur, lança muita luz sobre como ela liderou Israel durante aqueles dias terríveis.

Ben-Gurion, Golda Meir, Chaim Weizmann, que foi o primeiro presidente israelita. O que significam estes nomes para os israelitas 75 anos depois da independência?
Ao comemorar o seu 75.º aniversário e ao enfrentar uma grande crise política, social e ideológica, muitos israelitas recorrem aos pais fundadores num esforço para os comparar com a atual liderança de Israel. Isso é praticamente impossível, pois as condições eram totalmente diferentes nos primeiros anos do que são agora. Os desafios que Israel enfrenta hoje são diferentes daqueles dos primeiros anos. Israel enfrentou então uma guerra de sobrevivência e construção da nação, criando a infraestrutura económica, técnica, tecnológica, educacional, industrial do país. Hoje é essencialmente a luta pela alma de Israel, em que direção está a ir o país e se consegue permanecer judeu e democrático no momento em que 20% da população são árabes, 15% ultraortodoxos, meio milhão de colonos na Judeia e na Samaria, 1,5 milhões de imigrantes da Rússia, 200 000 judeus da Etiópia, asquenazes (judeus de origem europeia) versus sefarditas (judeus cujas famílias vieram do norte da África e de países árabes). Acima de tudo, pode Israel ser simultaneamente judeu e permanecer uma democracia ou isso é irreconciliável? Infelizmente, os pais fundadores e uma mãe, Golda Meir, não podem servir como fontes de orientação porque Israel é hoje um país totalmente diferente que enfrenta problemas diferentes dos que eles enfrentaram. Eles eram as pessoas certas para o seu tempo.

leonidio.ferreira@dn.pt

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