"Glória à Ucrânia. Glória aos Heróis". A resistência à Rússia tem mão portuguesa

Na Polónia a comunidade ucraniana luta contra a Rússia e a ajuda vem dos pontos mais inesperados da Europa, como Portugal. Uma resistência inusitada, mas que os voluntários justificam dizendo que "esta é a guerra de um homem só, todos os outros só querem a paz".
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Zielna, número 37, em Varsóvia, na Polónia, é agora a morada de uma resistência a Putin formada por ucranianos, russos, polacos e portugueses. A sede do Instituto Polaco de Línguas e um restaurante no edifício contíguo foram transformados num improvisado "quartel" comandado por civis, muitos deles com estatuto de "inimigos da Rússia". À porta do número 37 abraçam-se para entoar "Slava Ukraini. Heroiam Slava" ("Glória à Ucrânia. Glória aos Heróis"), momentos depois do enfermeiro Ricardo Castanheira e do controlador de tráfego aéreo Vasyl Kovpak descarregarem bens de primeira necessidade recolhidos em Portugal. Só na primeira semana de março mais de dez viaturas portuguesas descarregaram alimentos e transportaram ucranianos para Portugal.

Naquele "quartel" de resistência a Putin dezenas de mãos em ritmo frenético passam o dia a dividir e a embalar os bens entregues que dali seguem para o corredor humanitário aberto na Ucrânia, desde a fronteira até Kiev. "No regresso o lugar é dado a quantas pessoas se puder ajudar a sair das fronteiras da Ucrânia para a Polónia", diz Ivan Sokolov. E muitas são depois transportadas através de boleias portuguesas.

Russo, a viver na Estónia há mais de dez anos, onde dirige uma empresa de desenvolvimento de software, Ivan Sokolov está a trabalhar no esforço de guerra, em Zielna 37, desde 26 de fevereiro. Acompanha a corrente Portugal-Polónia-Ucrânia que chega ao "quartel" desde 2 de março, quando as primeiras dezenas de carros partiram de Portugal, com voluntários civis, sem associação a qualquer entidade pública ou particular de solidariedade social, apenas com donativos de particulares para suportar os custos da viagem de ida e volta, numa improvisada caravana humanitária.

Ali os portugueses são recebidos com "enorme gratidão e muito espanto, afinal, a 3200 de quilómetros de distância porque iriam querer vir até aqui?". Por todo o edifício repete-se, "estamos sem palavras para descrever como alguém que não conhece a Ucrânia, não conhece as estradas para chegar até ela, não sabe o que vai encontrar e, mesmo assim, percorre milhares de quilómetros, para salvar vidas ucranianas quase a conta-gotas e correndo o risco de um dia também serem considerados "inimigos da Rússia"".

Ivan Sokolov, por ser dissidente russo, já é um dos "inimigos da Rússia" e está, "no mínimo", sujeito a um "presente" de 12 anos de prisão por ajudar os ucranianos com bens de primeira necessidade, transportados através do corredor humanitário. E, depois, trazer famílias para Varsóvia, onde transportes como os dos portugueses as ajudam a chegar às suas famílias em diferentes pontos da Europa.

Não existe medo. "Isso é algo que não está nos pensamentos dos russos que saíram do país há muitos anos e agora veem este conflito armado a matar centenas de civis e milhares de soldados, por pura loucura de Putin que deseja anular a identidade de um país estabelecido, com cultura e língua próprias", comenta Ivan Sokolov.

O engenheiro informático, de 42 anos, acredita mesmo que "a Rússia, Putin, estão descontrolados e se ninguém ajudar os civis a saírem dali rapidamente o mundo estará perante um possível novo Holocausto ou uma revolução civil sem precedentes".

Assim que soube da organização que estava a ser formada em Zielna 37 não hesitou em partir da Geórgia, onde estava em trabalho, passar por Kiev e "ajudar os amigos a atravessarem a fronteira", até chegarem a Varsóvia, onde, tal como ele, se associaram à ação.

"Portugueses, franceses, alemães, são aqui uma luz, prova viva de que a Europa está unida contra a megalomania de Putin". Com a corrente solidária a atravessar o continente, Ivan espera agora que o líder russo "seja rapidamente eliminado pelos seus próprios homens de confiança. A única solução possível, caso contrário a revolução civil na Rússia não estará longe", afirma sem rodeios.

"Sanções nada farão. Aos russos e à Rússia, Estado, isso pouco importa. Os ordenados são baixos para a maioria e as pessoas não querem saber se com as sanções deixam de chegar grandes marcas mundiais e tecnologia. De qualquer modo, a maioria já não tem acesso a esses bens a menos que poupe dois ou três ordenados."

A única solução é "esperar pela revolta dos russos contra o que está ser feito na Ucrânia, incentivados por serem obrigados a lutar numa guerra que não é sua e com a qual maioria não concorda". Quando essa revolta acontecer Ivan acredita que "Putin há de morrer, mas será sempre uma morte com pelo menos oito anos de atraso, desde que a Crimeia foi tomada". Espanta o engenheiro informático que "ninguém tenha feito nada em concreto para travar Putin, seja da parte da União Europeia ou dos Estados Unidos da América".

Por agora as pessoas não concordam com a guerra "mas ainda estão iludidas pela propaganda e no escuro, com redes sociais desconectadas e os media completamente controlados, a passar apenas informação autorizada, como os números adulterados de mortos civis e militares". Pela Rússia "os ucranianos são apresentados como estando muito armados e a matar mais soldados russos, o que não é real", acredita Ivan.

Da comunidade russa a viver em Kiev chega-lhe "a opinião de que Putin está a usar mentiras para usurpar a Ucrânia". Pela frente estará, talvez, "um conflito de dois a três anos, no qual toda a resistência será pouca".

Andre, de 42 anos, é russo e deixou a sua pátria em 2014, quando a Crimeia foi ocupada. Passados oito anos é proprietário de uma escola de formação de eletricistas nos Estados Unidos da América, onde se refugiou com a família porque pensou que "a seguir à invasão da Crimeia nada de bom virá pela frente". Agora está de novo na Europa, a um país e meio de distância da Rússia, e tem a certeza de que está no sítio certo porque "os russos também têm de lutar pela Ucrânia", mesmo que isso custe a sua liberdade, tendo em conta "a lei dos 12 anos de prisão aprovada a 2 de março".

E, tal como Ivan, é um dos responsáveis por colocar os camiões cheios de bens de primeira necessidade no corredor humanitário que parte da fronteira da Polónia com a Ucrânia "e vai até aos pontos mais quentes do conflito, tudo em articulação com as tropas ucranianas e outros dissidentes russos". Bens enviados de Portugal, França, Alemanha ou Polónia.

Para entrar no corredor a resistência à Rússia, organizada na Polónia, aluga autocarros "e com autorização para entrar na zona neutra da Ucrânia, abrangida pelo corredor humanitário, os bens de primeira necessidade são depois passados para camiões ucranianos comandados pelas tropas que os distribuem nas zonas de maior necessidade".

No regresso os autocarros vêm ocupados por refugiados que Andre, assim como Ivan e outros dissidentes russos, ajudam a passar a fronteira para a Polónia onde ficam em centros de apoio, como o de Lublin, à espera de embarcar rumo a outras cidades polacas ou até para Portugal, carro a carro.

Marina descreve uma ajuda que pode ser vista como um "conta-gotas". Afinal, "são carrinhas de nove lugares vindas de Portugal, carros de cinco lugares, outras vezes autocarros", como os 24 que partiram de Lisboa neste dia 8. A ajuda pode parecer "amiúde", mas Marina desafia a que "multiplique isso por dezenas de idas e vindas de Portugal, Espanha, França, Alemanha e vão ver a Europa unida a receber os ucranianos e a levantar barreiras a Putin". E não só. "Para os ucranianos que querem ficar no país e lutar, resistir, a ajuda humanitária seguirá adiante custe o que custar".

O pai e a irmã chegaram a Varsóvia a 3 de março. Apanharam um comboio em Kiev que demorou um dia a encher até partir. "Devia transportar mil pessoas, a bordo seguiram 4 mil, sentadas nos bancos, deitadas no chão, sem condições de higiene, sem espaço pessoal, a dormir deitadas em fila lado a lado." A família de Marina partiu em direção a Varsóvia não só para se colocar em segurança mas porque soube que ela estava a trabalhar com a rede de ajuda humanitária em Zielna 37 e que a partir dali "uma resistência estava a ajudar pessoas a atravessar a fronteira e a sair da Ucrânia".

O seu pai, Alexander, com mais de 65 anos, já não é chamado a combater e a irmã, Irina, "não podia ficar sozinha em Kiev com os riscos a aumentarem, entre eles o de violação por mercenários russos".

Chegados de madrugada, depois de quase dois dias para percorrer 780 quilómetros de comboio, "o seu cheiro era terrível, as roupas estavam imundas, por causa de virem deitados no chão". Marina tem a certeza de que "nunca será esquecida a imagem do pai e da irmã a saírem no comboio". Por momentos, fê-la viajar no tempo, "a imagens de comboios, bem mais degradantes e com um destino fatal, que circulavam pela Europa cheios de pessoas amontoadas como bichos".

Desde que no início de março se apresentou como voluntária para o esforço de guerra contra a Rússia neste "quartel" de ajuda humanitária, Marina já conseguiu retirar de Kiev "uma família com seis crianças que estava em risco".

Diz a gestora comercial que "os polacos estão muito solidários com os ucranianos e estão a voltar todos os recursos que têm para receber refugiados". Nos dias seguintes chegaria mais gente, "pelo menos dois carros com mulheres e crianças, famílias nossas amigas que eu, o meu pai e a minha irmã vamos ajudar a atravessar a fronteira para que depois se restabeleçam em Varsóvia".

Aliás, Alexander, pai de Marina, não tem dúvidas de que irá atravessar a fronteira "quantas vezes for necessário para retirar quem está em risco de morrer às mãos dos russos". "A minha vida já foi vivida, a das crianças e das suas mães não e ali estão em risco", completa.

É a gratidão por estas mãos portuguesas na resistência que levam Ivan Sokolov a convidar Ricardo Castanheira e Vasyl Kovpak a descansarem no hostel onde está hospedado, até chegar a hora de partirem com as famílias ucranianas que vão levar de regresso a Portugal.

Uma solidariedade recíproca que a dupla portuguesa já tinha encontrado em França, quando os Bombeiros Sapadores de Versalhes abriram as portas do quartel para os receber, ofereceram as instalações para descanso e um café. "O comandante, Laurent Maurreaux, fez ainda questão de garantir que nas próximas viagens, tantas quantas fossem possíveis, as portas daquele e de outros quartéis dos bombeiros sapadores ao longo da França iriam estar abertas", comentam Ricardo Castanheira e Vasyl Kovpak.

Quando iniciaram a primeira viagem tinham acabado de se conhecer e unia-os apenas a solidariedade para com a Ucrânia.

Terminada a deslocação a 6 de março, dias depois os portugueses regressaram à estrada. Passou apenas o tempo de reunirem novos donativos de empresas, instituições de solidariedade e amigos.

Depois da primeira viagem, o seu projeto humanitário (Portugal-Ucrânia-Portugal Corredor Humano) "está a ganhar uma força incrível". Em Varsóvia a dupla já é aguardada por Ivan, Pablo, Marina e Andre. Dentro de alguns dias voltam todos a dar as mãos na resistência contra a Rússia.

Nos bens de primeira necessidade mais urgentes, Ricardo e Vasyl levam medicamentos e produtos de higiene.

Quanto às vidas a salvar, são de mulheres e crianças, cada vez mais em risco de pobreza e ilegalidade, à medida que as semanas passam, seja na fronteira ou em Varsóvia.

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