Glen Powell, um 'killer' hilariante

Em Veneza há um filme a criar burburinho. Pode ser um clássico do instante: <em>Hit Man</em>, de Richard Linklater, ovacionado a meio na própria sessão da imprensa. Mas é na fronteira entre a Polónia e a Bielorrúsia que temos cinema urgente: <em>Green Border</em>, de Agnieszka Holland.
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Uma comédia de adultos para no começo da semana desanuviar o ambiente. Mas Hit Man, de Richard Linklater, não é só para consumo leve. Tem muitas calorias para um espectador que quer pensar entre as aulas de filosofia e psicologia que a personagem de Glen Powell leciona, ele que é muita coisa: uma possibilidade de boneca russa quando se torna agente infiltrado da polícia de Nova Orleães. Um homem com muitas personalidades que se chama Gary Johnson, verdadeira lenda das histórias dos fait-divers do "isto é incrível" das "true stories" dos tablóides americanos. Veterano do Vietname, professor de universidade, polícia, pai e golpista.

Passou no Lido fora-de-competição e é até à data um dos com melhor receção desta 80.ª edição do festival. O realizador da trilogia Before Sunset é perito em manter na linha um guião que nas mãos de um tarefeiro ficaria uma mera comédia romântica insípida. Com o seu toque, Hit Man é um objeto na linha de algumas das melhores comédias dos Coen como Arizona Júnior, um conto de vigarices e enganos com pujança dramática e um humor fino sempre na fronteira com a caricatura de uma certa América castiça. E é sobretudo uma demonstração da polivalência de Glen Powell, que graças aos disfarces do seu polícia infiltrado, consegue criar brilhantemente uma série de falsos assassinos contratados para apanhar homicidas. O ator que muitos descobriram em Top Gun: Maverick tem aqui um dos raros papéis que pede a alguém para ser galã protagonista e personagem de composição. Depois deste filme muito dificilmente não se tornará num dos grandes leading man de Hollywood, sobretudo porque tem um porte de cinegenia capaz de provocar assolapados saudosismos com as estrelas de cinema de outros tempos.

Trata-se ainda de uma comédia que consegue ter uma corte de vertigem emotiva que liga bem com a forma sexy como se filmam os corpos dos atores. Também Adria Arjona, da série Andor, dá imenso nas vistas. Este é então o Linklater inspirado na comédia dos tempos de Escola do Rock e não o Linklater insonso de Morre...e Deixa-me em Paz. Como o próprio disse, esta é uma história que pode ir para o humor mas também para o film-noir e o thriller, mas, na verdade, é acima de tudo uma reflexão sobre um estudo de psicologia acerca da possibilidade de termos muitas identidades. Uma boa crónica de bons malandros.

Igualmente fora de competição, Veneza apostou num comédia que também ia a muitos registos: Making Of, de Cedric Kahn, cineasta sempre eficaz de um certo cinema de indústria francesa, autor de obras como O Tédio ou Sinais Vermelhos, aqui a explorar o que pode acontecer nos bastidores de uma rodagem complicada de um filme francês que pretende relatar os acontecimentos verídicos de uma luta de trabalhadores de uma fábrica contra o patronato. Cinema dentro do cinema a partir da câmara de um aspirante a cineasta que é contratado à última da hora para fazer um making-of.

Kahn mistura humor e um pensamento ácido sobre o cinema do real destes dias e o cinismo da indústria de cinema francesa. Um objeto que vai crescendo à medida que avança e que se torna sem problemas num autêntico "agrada-multidões". É bem possível que chegue a Portugal num dos festivais da rentrée.

Na competição, o filme com o tema mais de "agenda" no momento: Green Borders, de Agnieszka Holland, olhar sobre a atual tragédia na "fronteira verde" entre a Bielorrúsia e a Polónia, onde os migrantes são atraídos para uma situação de degradação humana e constantemente agredidos e despachados para uma terra de ninguém. A câmara da cineasta polaca coloca o espectador em três níveis: no corpo de uma família síria que tenta atravessar a fronteira, num grupo de ativistas polacos que ajudam os refugiados e num dos guardas polacos que, contra sua vontade, persegue e maltrata os migrantes segundo as instruções do seu governo. Green Borders é o regresso do grande cinema de ativismo político, um levantamento de provas sobre a forma como o governo polaco gere uma situação desumana. É um filme que para além do seu peso de denúncia tem uma força imersiva cinematográfica. Perante a "barbárie" humana, Holland tem quase sempre soluções dramáticas longe dos simplismos de um certo cinema das boas intenções. A dor aqui encenada é real, tal como o seu humanismo. São imagens sem cores mais fortes do que o cinema. Uma urgência que deixou silenciada a sessão para a imprensa na sala Darsena. Silêncio de morte, já agora...

dnot@dn.pt

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