Glazer e a insinuante pele do filme de Holocausto

Na competição, arrepios fortes com o novo de Jonathan Glazer, <em>The Zone of Interest</em>, objeto inclassificável. Na secção Cannes Premiere, notável conto de transcendências absurdas, <em>Eureka</em>, de Lisandro Alonso, que junta Viggo Mortensen e a portuguesa Luísa Cruz.
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É a primeira vez que o cineasta de Birth e Debaixo de Pele consegue a competição em Cannes. Poder-se-à pensar que havia algum preconceito com o facto de o seu passado vir da realização de vídeos musicais, nomeadamente um genial corpo de trabalho com Radiohead ou Massive Attack.

Agora, com uma adaptação do livro de Martin Amis (escritor britânico, que morreu este sábado), A Zona de Interesse, não só consegue a competição, como uma espontânea consagração. Curiosamente, o livro de Amis é aqui adaptado com a mais feroz das liberdades. Neste mundo de Glazer as matérias sensoriais da imagem e do som estão sempre em maior evidência neste conto sobre um oficial das SS, Rudolph Hoss, que comanda as operações no campo de concentração de Auschwitz. A câmara segue o dia-a-dia dos Hoss, uma família em paz com um ideal de lar paradisíaco, mesmo nas traseiras do horror que ignoram. Para Hedgwig, a esposa, a construção desse paraíso é o objetivo principal dessa sua função de matriarca, projetando um futuro de felicidade para os seus filhos num local que lhe oferece paz, contacto com a Natureza e as regalias de um serviço de criadagem. A espaços, os fumos das câmaras de gás são ignorados, tal como alguns prisioneiros do campo de concentração que discretamente ajudam na jardinagem. Pelo meio, alguns gritos de pavor de judeus à porta da morte.

Glazer filma de forma gelada essa exposição da banalidade do mal. Fá-lo através da criação de ambientes geométricos e secos, sons da música de Mica Levi que elevam uma tensão de horror, cortes no ecrã a vermelho, imagens de contos de fada em negativo sem cor e, golpe de asa, com uma visita ao percurso atual turístico de Auschwitz. É daí que nasce um medo que não se define, que não estava no cânone do chamado "filme de holocausto". Como um conto de fadas em que se ouvem ao fundo som de metralhadoras enquanto as crianças louras brincam nas margens do rio em dias de sol. Um éden da negação.

Filme de vários elementos e tons, The Zone of Interest de forma digna não respeita os emparelhamentos das estruturas narrativas clássicas, está muito mais próximo da chamada intervenção artística de "cinema de galeria". Às vezes, em busca da sua própria tese, torna-se vítima do seu excesso de ensaio plástico. Como bónus, os atores alemães são todos prodigiosos na sua frieza, em especial Sandra Huller, conhecida dos cinéfilos portugueses de Toni Erdmann e O Espaço Entre Nós, a primeira grande favorita ao prémio de interpretação feminina.

Anteontem, na secção Cannes Premiere, outro abalo: Eureka, do argentino Lisandro Alonso, filme apoiado pelo ICA, com produção de Joaquim Sapinho e a presença da atriz Luísa Cruz como freira boémia. Viggo Mortensen é um cowboy a chegar a uma cidade "sem lei" do Oeste americano. A meio de um duelo, percebemos que era uma partida: as imagens eram de um filme que alguém numa reserva do Dakota, nos EUA, assistia num pequeno televisor. A partir daí, entramos num policial abstrato que se torna num poema sobre reencarnação dos índios e vai até a Amazónia dos aos 1970. Cinema livre, escancaradamente livre de um cineasta que subverte géneros e dá tudo no "slow-movie" pardacento. O laconismo desta aventura é estimulantemente invulgar...

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