Mais de 350 quilómetros separam nesta quarta-feira aquilo que nem uma inédita geringonça conseguiu unir. As centrais sindicais festejam o seu 1.º de Maio, o Dia do Trabalhador, a três horas e meia de distância de viagem: em Lisboa, a CGTP sobe a Avenida Almirante Reis, até à Alameda, onde se concentram os discursos políticos, e a UGT junta-se no Parque São João da Ponte, em Braga, para uma festa..Há um ano, uma e outra central sindical prometiam luta e mais luta, e reivindicavam aumentos do salário mínimo nacional. Mas a secretária-geral adjunta socialista, Ana Catarina Mendes, avisava o secretário-geral da CGTP, Arménio Carlos, que não se podia dar passos maiores do que as pernas. "Não podemos dar todos os passos ao mesmo tempo para chegar ao fim. É um passo de cada vez para alcançar a meta." .Neste ano, a dirigente socialista segue para Braga, para a festa da UGT, e ao caminho da CGTP irá Maria Antónia Almeida Santos e Porfírio Silva..Uma revisão laboral na especialidade.Um ano depois, a meta ainda não está à vista: no Parlamento, "muito em breve", eventualmente já na próxima semana, devem arrancar os trabalhos do grupo que vai discutir na especialidade as propostas de alteração ao que o governo apresentou - mas aqui também a geringonça parece falhar..BE e PCP desconfiam que o PS se vá entender com o PSD para fazer passar as medidas que o executivo socialista negociou com os patrões na concertação social. Se o PS não reverter medidas como os três dias de férias ou o trabalho suplementar, que o governo PSD/CDS implementou durante a troika, bloquistas e comunistas devem votar contra. .Pelo lado do Bloco, isso é certo, garantiu o deputado José Soeiro ao DN. A incógnita, no debate na especialidade, assumiu o parlamentar, é o que fará o PS com medidas já aprovadas na generalidade..António Costa terá ameaçado que se sentiria desautorizado se o PS desrespeitasse o acordo obtido com as confederações patronais, notando que era a sua assinatura como primeiro-ministro que lá estava..Um novo tipo de sindicalismo.Fora do palco das centrais sindicais, há um novo sindicalismo que emerge e que tem estado por trás de alguns dos protestos que mais abalaram a sociedade portuguesa, nos últimos meses: de professores, de enfermeiros e, mais recentemente, de motoristas de materiais perigosos..Para Elísio Estanque, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES), "há dinâmicas novas, formas diferentes de expressar algum descontentamento setorial". Estas dinâmicas não se podem desenquadrar de vários aspetos, defendeu ao DN o membro do Núcleo de Estudos sobre Políticas Sociais, Trabalho e Desigualdades do CES..Por um lado, referiu, há "a propagação de um discurso populista, que é esvaziado de orientações de natureza ideológica e política, um discurso fácil e simples, simplista até, que tende a diabolizar os políticos, que tende a apelar a reações radicais e que se presta a atrair todo o tipo de oportunismos e interesses escondidos, que tentam cavalgar descontentamentos legítimos e reivindicações legítimas".."Tenho algumas dúvidas se se pode falar de sindicalismo no sentido clássico do termo", adiantou Elísio Estanque. "Há dinâmicas de ação coletiva que procuram defender grupos mais ou menos circunscritos da força de trabalho, com razões de queixa, mas há contornos que levantam fortíssimas suspeitas de aproveitamento político", apontou, recordando por exemplo quem representa o Sindicato dos Motoristas de Matérias Pesadas.."É uma mistura difícil de descodificar que tem que ver com esta tendência mais geral de esvaziamento ideológico e de perda de sensibilidade naquilo que foi a tradição sindical", sintetizou o professor universitário. Esta tradição organiza-se, desde o século XIX, "reivindicando direitos, salários, horários mais decentes e melhores condições de trabalho, mas também se desenvolveu para consolidar sensibilidades de solidariedade, de justiça social e de progresso social".."Essa dimensão do humanismo e da solidariedade - que está mais em sintonia com as propostas do campo da esquerda - parece que se tem esvaziado, desaparecido, e ficam apenas as reivindicações de natureza económica e numa lógica mais corporativista. É raro verem-se greves de solidariedade", constatou. "E isso é sinal dos tempos.".Elísio Estanque enquadra também estes fenómenos - como a "greve cirúrgica" dos enfermeiros - "num contexto político e numa conjuntura política em que, da parte das forças da oposição, há uma tentativa de aproveitamento para desgastar o mais possível este governo e esta solução política"..Sindicatos incapazes de atrair mais vulneráveis.Há um ano, o secretário-geral da Intersindical, Arménio Carlos, saudava o que dizia ser "o maior 1.º de Maio dos últimos anos em Portugal". Elísio Estanque olha criticamente para o "fechamento" dos sindicatos mais tradicionais. "Os próprios sindicatos não têm sido capazes, não têm conseguido alterar a linguagem, os modos organizativos, de comunicar, mobilizar e atrair estes setores mais vulneráveis." Nos call-centers, por exemplo, há sindicatos que estão a aparecer que "se afastam" do campo sindical clássico. É outro sinal dos tempos.."A sensação que se tem é que há, da parte da maioria do dirigismo sindical tradicional, um desinteresse ou uma impotência relativamente a uma abertura maior, pelo menos para refletir o porquê destas transformações, porque é que o mercado de trabalho está assim, como é que é possível organizar estes setores, organizar trabalhadores desempregados e precários", apontou Elísio Estanque..Para o professor universitário, "não há ninguém que tenha solução imediata ou milagrosa", para contrariar o atual estado das coisas, mas "os dirigentes sindicais fogem da discussão", "não querem ser confrontados com algo que os põe em causa". "Há um envelhecimento, nem estou sequer a falar da idade, mas sim das ideias, do modo de funcionar e mobilizar", diagnosticou. "Mesmo no período da crise, em muitas dessas ações as centrais sindicais quiseram demarcar-se do que era os chamados movimentos inorgânicos, mesmo quando vinham do lado de precários", "sempre muito ciosos de que eles eram os representantes da força de trabalho", sem quererem "misturas". .É este fechamento que ajuda a explicar "algum isolamento e atrofiamento que hoje existe na capacidade de ação do campo sindical e às dificuldades em renovar procedimentos e ideias e em atrair estes novos setores, que são jovens, com mais qualificações, mais acesso à informação, mas muito despolitizados", sintetizou Elísio Estanque..Nesta quarta-feira passam 45 anos do 1.º de Maio festejado em liberdade e também o único que juntou no atual estádio do INATEL, em Lisboa, o líder do PS Mário Soares e o secretário-geral do PCP Álvaro Cunhal - muito antes de qualquer geringonça. Lado a lado, Soares disse que "foi hoje, foi aqui que o fascismo foi vencido". E o socialista por uma vez acompanhou Cunhal no grito de "viva a unidade de todos os democratas". Cada um seguiria o seu caminho.