Geringonça. De aliados essenciais a parceiros de ocasião
22 de maio de 2018. Como é habitual na véspera das reuniões decisivas da Concertação Social, o ministro do Trabalho reúne-se com o Bloco de Esquerda para dar a conhecer as propostas que apresentará aos parceiros sociais. A reunião acontece já à noite e corre normalmente: os bloquistas não concordam com tudo, mas ficam com a garantia de que o documento contempla as medidas acordadas entre os dois partidos. Tentarão ir mais longe durante a discussão no parlamento. O costume.
23 de maio de 2018. Reúne a Concertação Social. O governo entrega aos parceiros sociais a proposta de alteração às leis laborais. O documento chega às mãos do BE uma hora antes e os bloquistas nem querem acreditar no que leem: o executivo propõe 180 dias de período experimental (o dobro do prazo atual) no primeiro emprego, e o aumento de 15 para 35 dias do período máximo dos contratos de muito curta duração. As duas medidas foram omitidas nas conversações da noite anterior. Nunca tal tinha acontecido nos mais de dois anos e meio que leva a legislatura.
Há uma novidade que distingue os tempos conturbados que atravessa a geringonça. Já houve episódios de grande tensão - a venda do Novo Banco ou o chumbo da TSU, que obrigou à revisão de um dos anteriores acordos de Concertação Social, foram dois deles. Mas esta é uma crise que, evidenciando-se em dois temas fortes - as leis laborais e os professores - tem por detrás um outro diagnóstico: a pouco mais de um ano das eleições legislativas o PS quer assentar arraiais ao centro e para isso ensaia uma aproximação aos sociais-democratas. De aliados incontornáveis, Bloco de Esquerda e PCP passaram a parceiros mais ou menos de ocasião.
O governo anda à procura de conflitos?
Com as negociações do Orçamento do Estado para 2019 à porta, Jorge Costa, deputado e membro da direção do Bloco de Esquerda, deixa um aviso claro: "Este momento é muito importante. Na sequência do congresso do PS e de uma postura de auto-suficiência, em que a natureza e os compromissos desta solução política [leia-se a geringonça] foram obliterados do discurso do PS, o governo surge com um conjunto de decisões e anúncios que só podem provocar uma conflitualidade maior" - "tanto em termos sociais como em termos de relação política com os partidos da esquerda". O dirigente bloquista fala de uma "atitude política sobranceira perante os parceiros como se houvesse uma maioria socialista, que não existe". "A única interpretação para tudo isto é que o governo pretende ter um último ano da legislatura num registo conflitual, diferente do registo colaborativo que existiu até agora", diz ao DN.
No PCP não se fala em surpresa - o princípio vigente entre os comunistas é que 'do PS espera-se tudo'. "Temos tido variadíssimas provas de que as nossas posições não coincidem com as do PS", diz ao DN João Oliveira, líder da bancada do partido. Mas, até mesmo face ao historial de divergências na área do trabalho, o acordo firmado na Concertação Social com quatro confederações patronais é algo de novo. Não foi por acaso que no último debate quinzenal, Jerónimo de Sousa iniciou a intervenção não com a questão dos professores mas com as alterações às leis laborais. João Oliveira repete a advertência que o líder fez então: "Se estas propostas forem aprovadas vão prejudicar centenas de milhares de trabalhadores". Com seis projetos para discussão, o voto contra do PCP à proposta do governo é garantido. E o aviso também: "O grande conflito do governo é com os trabalhadores".
Já este sábado, a CGTP (que ficou fora do acordo na concertação social) dá um sinal disso mesmo, com uma manifestação em Lisboa contra as leis laborais, que contará com a presença do secretário-geral comunista. "Poderá ser o ponto de partida para a intensificação da ação reivindicativa nos locais de trabalho", disse à agência Lusa João Torres, da direção da Intersindical.
Nas jornadas parlamentares do partido, que decorreram nesta quinta e sexta-feira em Grândola, Jerónimo de Sousa acrescentou uma novidade ao discurso comunista, afirmando que o governo está em "travagem, senão inversão de rumo" nas políticas de devolução de rendimentos aos portugueses. E fez questão de assinalar a "crescente procura" de convergências com PSD e CDS em "matérias nucleares da ação governativa".
As advertências multiplicam-se também entre a bancada bloquista. Na quarta-feira, aos microfones da TSF, Jorge Costa afirmava que a aproximação entre socialistas e sociais-democratas se vai "alargando como uma mancha de óleo em áreas estratégicas da governação, como a legislação laboral". Um dia depois, Catarina Martins, líder do partido, voltou ao mesmo tema: "Seria muito estranho que o PS preferisse negociar" a legislação laboral à direita.
A verdade é que, depois dos acordos firmados na questão dos fundos europeus e da descentralização, o líder do PSD, Rui Rio, tem dado sinais de convergência noutras matérias. A começar pela legislação do trabalho. A probabilidade de o partido concordar com um acordo "assinado quer pelas entidades patronais, quer pelos sindicatos, designadamente a UGT" é "muito, muito elevada", disse o líder social-democrata, a 31 de maio. Sete dias depois, Rui Rio abre nova porta: "Estamos disponíveis a dar os passos necessários para fazermos a reforma mais adequada do sistema de saúde" - e aí podem estar os votos que o PS se arrisca a não ter à esquerda. A explicitação da reforma que deve ser feita não é surpresa, mas é de fazer PCP e BE saltar na cadeira: "Ter o Estado como principal garante da acessibilidade aos cuidados de saúde, mas com a possibilidade de contratualização com os outros setores, para que os cidadãos possam poder escolher". Uma visão semelhante à de Marcelo Rebelo de Sousa, que veria com bons olhos um entendimento entre os dois partidos na área da Saúde.
Os temas quentes em cima da mesa
Se a divergência em torno da contagem do tempo para a progressão das carreiras é o assunto mais mediático por estes dias, as relações laborais, no âmago das reivindicações de comunistas e bloquistas, são o tema com maior potencial de estragos. À esquerda, espera-se para ver o que vai acontecer a 6 de julho, quando as propostas do governo (e as do BE e PCP) forem a discussão e a votos na Assembleia da República. Se o governo avançar com o documento como está, e aprovar a proposta com os votos do PSD, não sobrarão muitas dúvidas. "Será um sinal forte de uma reorientação política do PS", diz fonte bloquista.
A outra frente de combate é a dos professores. E já é uma sequela. Nas negociações para o Orçamento do Estado para 2018, comunistas e bloquistas fizeram uma enorme pressão para incluir no documento uma norma sobre o tempo de serviço e a progressão na carreira dos professores, consagrando no documento a declaração de compromisso que já tinha sido firmada entre o governo e a Fenprof.
A redação final da frase que ficou escrita no Orçamento foi um verdadeiro cavalo de batalha, replicando uma discussão que os sindicatos já tinham travado. Segundo fonte que acompanhou as negociações, foram "horas e horas" a discutir só uma preposição - "de" ou "do". Para a esquerda, como para as organizações sindicais, o "de" permitiria ao ministério propor a contagem de tempo que entendesse, o "do" era sinónimo de contagem de todo o tempo de congelamento das carreiras. Ganhou a segunda - "A expressão remuneratória "do" tempo de serviço nas carreiras" - mas de pouco está a valer agora. A manter-se o impasse, a questão saltará para cima da mesa de negociações do Orçamento.
Estas são as divergências mais evidentes, mas as dissensões não se esgotam aqui. Outro grande foco de tensão que vem a caminho é a lei de bases da Saúde, um tema onde vão opor-se as conclusões da comissão liderada por Maria de Belém Roseira com o trabalho desenvolvido por António Arnaut (socialista fundador do SNS, recentemente falecido) e o médico e antigo dirigente do BE João Semedo. Com o Bloco a fazer pressão para acelerar calendários, Costa já respondeu com um rotundo não. A saúde está também na mira do PCP (e na lista de reivindicações para o Orçamento): os comunistas anunciaram ontem que vão chamar ao parlamento, com caráter de urgência, o ministro da tutela, Adalberto Campos Fernandes.
Mas há mais. No Ambiente, a tensão entre governo e partidos à esquerda tem sido permanente e em crescendo, do caso das descargas poluentes no Tejo à prospeção de petróleo ao largo de Aljezur, que tem como mais recente episódio a autorização da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) para a realização de um furo sem estudo de impacto ambiental. Nesta frente entra ainda em destaque o PEV, que não tem poupado duríssimas críticas ao executivo de António Costa.
E também vem aí a comissão parlamentar de inquérito às rendas excessivas na energia, que terá grande parte do seu foco na ação do antigo ministro Manuel Pinho, que tutelou o setor no primeiro governo de José Sócrates. Nesta matéria há, aliás, um embate anunciado - depois da reviravolta do ano passado, o Bloco de Esquerda vai insistir na proposta de corte de subsídios às renováveis (em 2017 o PS começou por votar a favor e depois chumbou a proposta).
E agora? Ou há orçamento ou há eleições
No início desta semana, as direções parlamentares do Bloco de Esquerda e do PCP reuniram com o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos, no pontapé de saída para o Orçamento do Estado de 2019. No caso do PCP, a reunião limitou-se ainda à discussão de calendários, no caso do BE já serviu para os bloquistas sinalizarem o desagrado com as alterações às leis laborais. O arranque oficial das negociações será em meados do mês, com o encontro entre António Costa e os líderes do BE e PCP (em separado, como sempre), e onde estarão também os ministros Mário Centeno e Vieira da Silva.
A possibilidade de o orçamento ser aprovado de outra forma que não pelos partidos da geringonça não parece estar nos planos de ninguém. O próprio António Costa já disse, em entrevista ao DN, que "no dia em que esta maioria não for capaz de produzir um Orçamento, esse é o dia em que este Governo se esgotou e, inevitavelmente, isso implica a queda do Governo". O caminho para lá chegar promete ser árduo. E depois, com as legislativas à distância de pouco mais de um ano, será tempo de campanha eleitoral.
À esquerda, cresce a desconfiança de que, para o PS, esse tempo já começou. Francisco Louçã escrevia esta semana, num artigo para o Expresso Diário, depois replicado no esquerda.net, o site do BE : "O Governo quer um verão e um outono em conflito social, porque acha que essa é uma estratégia que rende votos. Esta escolha merece atenção. Agora é que começou a campanha eleitoral de 2019 e foi o Conselho de Ministros quem deu o tiro de partida - e com muita pólvora".