Gastronomia à boleia da literatura serve Açores à mesa em Baião

Sob a herança de Eça de Queirós, estreou-se neste fim de semana no Restaurante de Tormes, em Santa Cruz do Douro, Baião, a primeira edição do festival Virar a Mesa do Avesso.
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O livro A Vida no Campo, de Joel Neto, e uma paisagem estonteante foram apenas pormenores que condimentaram, anteontem, uma longa noite na Fundação Eça de Queirós, em Santa Cruz do Douro, Baião, onde durante dois dias a gastronomia se enredou na literatura, inspirando tertúlias livres e recheadas de memórias. Tudo isto a pretexto do Virar a Mesa do Avesso, ideia do jornalista da TSF Fernando Alves que nasceu há um ano durante o Festival Outono Vivo, na Praia da Vitória, na Terceira, Açores. Fernando era convidado da iniciativa que tinha Joel Neto como curador e também recebia Nuno Camarneiro, os protagonistas do projeto que Baião agora acolheu.

O evento arrancou neste fim de semana e Fernando Alves espera que "pegue de estaca". Afinal, "quando pensávamos que já não havia muito a inventar, estamos aqui hoje a provar que ainda havia espaço para juntar gastronomia e literatura e trazer os escritores para a cozinha, sabendo eu que o Joel e o Nuno sabiam fazer muito mais do que um ovo estrelado", revelou o mentor. O primeiro a mostrar os dotes entre tachos e panelas foi Joel Neto, trazendo a herança da ilha açoriana até à mesa do Restaurante de Tormes.

Ainda antes de a sala encher, ao final da tarde, os cheiros despertavam os sentidos de quem chegava. Em frente ao fogão, o cronista do DN apurava a comida sob a batuta dos chefes do espaço anfitrião, António Pinto, o Toninho, e António Queiroz Pinto, o Zé, até por não estar "habituado a cozinhar para tanta gente". Pai e filho são exímios na arte de receber e já com os estômagos dos clientes aconchegados e tudo bem servido acabam por revelar uma contagiante boa disposição. Antes, a ementa inspirada nos Açores era preparada e as mesas no lounge exterior decoradas com aperitivos vários.

Já passava das dez da noite quando o repasto foi servido. A abrir, sopa do Espírito Santo, seguida de alcatra terceirense com queijada Dona Amélia e pastéis de feijão a fechar, mas com características particulares que, segundo Joel Neto, permitiram "encontrar uma memória recôndita ao provar". O "uso de especiarias pouco usuais" foi comparado por Fernando Alves à tradição com touros na ilha Terceira, ou seja, como que aplicando a "lide à corda na cozinha". Estávamos já na tertúlia que encerrou o evento, ao ar livre. Altura em que o escritor baionense António Mota meteu uma "colherada" na conversa com uma crítica bastante condimentada. Em julho, o autor natural de Vilarelho disse ter recordado "o Natal" à conta da canela que pautou o menu, destacou o cravinho, a pimenta da Jamaica, "uma sensação de salgado e ao mesmo tempo doce", e ainda deu um salto ao Alentejo ao sabor do pão na sopa do Espírito Santo que o remeteu para a açorda. Mais do que virar a mesa do avesso, os protagonistas embrulharam-na em experiências sensoriais que permitiram viajar e até recuar na história de Portugal, não tivessem sido os Descobrimentos a trazerem até nós as especiarias em foco.

"É mais fácil cozinhar"

"Sem uma única razão" para declinar o convite, Joel Neto arregaçou as mangas para apadrinhar o lançamento do festival de Baião. Cozinheiro amador, propôs os pratos que depois "foram submetidos ao processo de prova de dois cozinheiros profissionais que não são açorianos nem cozinham estas receitas com frequência, de maneira que há uma certa interculturalidade, porque é assim que a cultura evolui". Como nunca cozinhou "para mais de dez pessoas", contou com a ajuda de quem sabe para partilhar parte do seu legado.

Para o autor de O Arquipélago, "o ato de escrever é profundamente doloroso, por isso cozinhar é mais fácil". Isto porque "na cozinha não tenho exigência nenhuma. Se sair mal, saiu mal, mas não posso é escrever mal". E os ingredientes para uma escrita de sucesso estão "na capacidade de comover o leitor e na capacidade de ele se reencontrar", sendo que "os livros têm sabores e é suposto terem cambiantes, pois um livro que tenha só um sabor só tem uma camada de leitura e, com isso, não há literatura", concluiu Joel Neto, antes de se fazer convidado para regressar.

Em representação da Câmara Municipal de Baião, a vereadora da Cultura e Turismo, Anabela Cardoso, lembrou a ligação do concelho à literatura, justificando a aposta no festival, reconhecendo "uma enorme adesão" e a vontade "de estender a outros locais no futuro", embora fizesse sentido "arrancar neste restaurante com fortes ligações a Eça de Queirós".

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