Gasolina no fogo e Putin. As cartadas de Trump para se manter no poder
Acompanhado de elementos da administração e da segurança, o presidente dos Estados Unidos saiu a pé da Casa Branca para se dirigir à Igreja Episcopal de São João. Horas antes, no domingo, o lugar de culto conhecido como a igreja dos presidentes havia sido alvo de fogo posto durante os protestos violentos que decorreram junto da residência oficial do presidente dos EUA.
O momento deixou atónitos os observadores, uma vez que Trump limitou-se a manter no ar uma cópia da Bíblia. E questionado pelos jornalistas disse apenas: "Temos um grande país. São esses os meus pensamentos."
Minutos antes, numa declaração ao país, ameaçou com a mobilização dos militares em todo o país, caso a violência não cesse. Violência que foi usada pelas autoridades para varrer as imediações da Casa Branca: onde decorria uma manifestação pacífica houve balas de borracha, gás lacrimogéneo e bastonadas num atropelo aos direitos cívicos.
A forma como Trump reagiu foi alvo de críticas de todos os setores, incluindo de (poucos) republicanos. Por exemplo, o senador Ben Sasse: "Há um direito fundamental - constitucional - de protestar, e eu sou contra a anulação de um protesto pacífico para uma operação fotográfica que trate a palavra de Deus como um adereço político", disse o republicano.
Um comentário em linha com o do líder dos democratas no Senado, Chuck Schumer: "A incessante necessidade do presidente Trump, um homem fraco, de se fazer sentir forte, levou-o a ordenar aos agentes federais que agredissem americanos reunidos pacificamente, para que ele pudesse ir sorrateiramente a uma sessão fotográfica junto da igreja. Para que pudesse acenar com uma Bíblia - não ler a Bíblia, nem sequer a sua Bíblia - como um adereço."
Além da condenação bipartidária de Trump, também a igreja rejeitou o sucedido. "Transformaram solo sagrado em campo de batalha", lamentou a reverendo Gini Gerbasi, que disse ainda que colegas seus foram vítimas da violência policial.
O mesmo aconteceu com jornalistas, como foi o caso da equipa de reportagem australiana do canal SBS.
O presidente continua a apostar em denegrir os meios de comunicação social, com a exceção da Fox News e de meios de extrema-direita. E agora os jornalistas foram vítimas como nunca. Segundo o Comité para a Proteção dos Jornalistas, até segunda-feira houve 125 violações à liberdade de imprensa, entre detenções e agressões.
Para Trump, porém, o dia resumiu-se a aparecer em público porque ficou irritado quando se soube que tinha recolhido para o bunker da Casa Branca na noite de sexta-feira. Tudo se resumiu a uma questão de imagem, e foi o presidente que decidiu fazer a caminhada. À NBC uma fonte na Casa Branca disse que a visita à igreja tinha como objetivo passar a ideia de que "Trump parecesse forte e no comando".
A mesma fonte disse que a administração concluiu que a iniciativa foi "ótima".
No meio de um dia cheio de notícias, uma outra quase passou despercebida. Donald Trump telefonou ao homólogo russo. Foi o Kremlin quem informou sobre a conversa, tendo acrescentado que o norte-americano informou o russo sobre o convite para a Rússia regressar ao G7.
Uma iniciativa condenada ao fracasso, uma vez que Reino Unido, União Europeia e Canadá estão contra. A cimeira, a decorrer nos Estados Unidos, foi adiada devido à pandemia e ainda não tem data definida.
Seria uma oportunidade para os dois homens se reencontrarem. É segredo de polichinelo que Putin tem interesse(s) em que Trump esteja na Casa Branca. Uma relação que começou em 2013. Então o empresário Donald Trump perguntava no Twitter se Vladimir Putin iria ser o seu "novo melhor amigo". O nova-iorquino ia realizar o concurso Miss Universo em Moscovo e queria conhecer o homem forte da Rússia.
O encontro não aconteceu então, mas recebeu um telefonema do porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov. E, já em Nova Iorque, Trump foi presenteado com uma "caixa preta lacada", que continha "uma carta selada do autocrata russo", como contam os jornalistas David Corn e Michael Isikoff no livro Roleta Russa. O seu conteúdo não é público, tal como o que trataram nos encontros a sós, e ao contrário dos elogios mútuos.
A interferência de Moscovo nas eleições norte-americanas não é fake news nem caça às bruxas. Está amplamente documentada (por exemplo, no relatório Mueller) e até o Senado de maioria republicana o confirmou em relatório publicado em abril, segundo o qual a Rússia interferiu em grande escala nas eleições e Putin dirigiu a interferência.
"A comissão [dos serviços secretos] considerou que as avaliações específicas das agências, bem como as avaliações de fontes abertas, apoiam a conclusão de que o presidente Putin aprovou e dirigiu aspetos desta campanha de influência", afirma o relatório do Senado.
"Com a aproximação das eleições presidenciais de 2020, é mais importante do que nunca que nos mantenhamos vigilantes contra a ameaça de interferência de atores estrangeiros hostis", disse o senador Richard Burr, como noticiou a PBS.
Um mês antes, em março, os serviços secretos lançaram o aviso: o Kremlin vai repetir a interferência na campanha eleitoral. Mas com pormenores que, à luz do momento, se tornam arrepiantes. "O principal objetivo da Rússia é fomentar uma sensação de caos nos Estados Unidos, embora as suas motivações estejam ainda em discussão e sejam difíceis de decifrar na ausência de fontes de informação de alto nível dentro de Moscovo."
A notícia foi revelada pelo New York Times, através de funcionários da administração que receberam a informação dos serviços secretos.
"A principal agência de informações da Rússia, a SVR, foi aparentemente além dos métodos de interferência de 2016, quando os agentes tentaram fomentar a animosidade racial, criando falsos grupos de Black Lives Matter e espalhando desinformação para suprimir a afluência dos eleitores negros. Agora, a Rússia também está a tentar influenciar os grupos supremacistas brancos", lê-se. Uma organização neo-nazi com ligações à Rússia, a Base, estaria a ser alvo de investigação.
A tática russa passa também pelo incitamento dos nacionalistas brancos a difundir de forma mais agressiva mensagens de ódio e, do outro lado da barricada, a acicatar grupos extremistas negros para a violência.
As operações de propaganda e de desinformação passam pela promoção de narrativas de divisão raciais, "incluindo histórias que enfatizam as alegações de abusos policiais nos Estados Unidos e realçam o racismo contra afro-americanos no seio das forças armadas".
Mas em relação a 2016 há mais novidades. Como as empresas de redes sociais controlam mais a presença de atores estrangeiros, a Rússia deixou de divulgar mensagens para o maior número possível de pessoas, mas a utilizar grupos privados no Facebook, ou em serviços de mensagens como o 4chan.
Haverá alguma relação entre esta operação russa e a violência que se regista nos EUA? Para já, o que se pode afirmar é que Donald Trump atirou as responsabilidades dos tumultos para o antifa, o ideal antifascista, tendo anunciado que pretende designá-lo oficialmente como terrorista (um propósito que levanta muitas interrogações porque antifa não é uma organização hierarquizada).
No entanto, o que está provado pelo Twitter é que um grupo que se autointitulava de Antifa US, com mensagens de ódio, era na verdade de um grupo de extrema-direita europeia, Identity Evropa, como explica a AFP.
Outras notícias apontam o dedo a manifestantes que pertencem a grupos supremacistas como os Boogaloo Bois, que se fazem passar por Antifa, como é exposto pela Vice.
Certo é que esta mistura de caos com laivos autoritários não deixa Trump minimamente incomodado. Como aponta a diretora do The Bulwark, Sarah Longwell, a "pandemia deixou mais de 104 000 mortos em 12 semanas e provocou uma crise económica que empurrou 40 milhões para o desemprego". E que fez Trump? "Durante este tempo o presidente usou o seu púlpito de rufia não para unir o país ou tentar libertar alguma da pressão que se estava a acumular nas nossas comunidades, mas para promover falsas curas médicas, promover falsos escândalos sobre Obama e espalhar teorias da conspiração sobre um falso homicídio".
Para concluir: "O comportamento do presidente marca o tom do país. Quando falta contenção ao presidente, ele cria mecanismos de legitimação para que todos na cadeia, políticos, polícias, cidadãos, sejam menos comedidos. Quando falta caráter ao presidente, há um vácuo de liderança. E o caos preenche sempre esse vazio. Quando o presidente se deleita com a violência e promete soltar 'cães viciosos' e 'armas ameaçadoras' sobre os manifestantes, não devemos ficar chocados quando as coisas escalam."
Seth Abramson, comentador e autor de três livros sobre Donald Trump, ainda é mais pessimista: "Se você não acha que o que Trump está a fazer agora aumenta as probabilidades de ele destacar os militares na altura das eleições exatamente pelas razões pelas quais você pode pensar que ele faria é porque você não está a prestar atenção e não leu o manual autocrático em que Trump tem estado a trabalhar desde o início." Ou seja, impedir o normal desenrolar das eleições marcadas para novembro.