Fidel Castro dedicou um discurso ao encontro dos líderes dos oito países mais industrializados (G8), que ia decorrer nas horas seguintes, em julho de 2001, em Génova. O líder cubano não perdeu a oportunidade para dizer que Silvio Berlusconi (Itália), Jacques Chirac (França), Gerhard Schröder (Alemanha), Vladimir Putin (Rússia), Tony Blair (Reino Unido), George W. Bush (EUA), Jean Chrétien (Canadá) e Romano Prodi (União Europeia) estavam "cada vez mais encurralados, no sentido moral e no sentido político". Enquanto os músicos Bono Vox, Bob Geldof e Jovanotti apelavam para que os líderes perdoassem a dívida dos países mais pobres, antes de atuar em Génova Manu Chao desafiava 100 mil espectadores em Milão a participarem nos protestos de forma a "afundar" o G8 naquela cidade portuária..Entre 200 e 300 mil pessoas, o equivalente de um terço a metade da população genovesa, oriundos um pouco de toda a Itália e Europa, entraram na cidade para se manifestarem contra o encontro, numa altura em que o movimento antiglobalização atingia o seu auge, alimentado pelo Fórum Social de Porto Alegre, que se realizara pela primeira vez meio ano antes, e pelos protestos contra a reunião intergovernamental da Organização Mundial do Comércio, dois anos antes, nos Estados Unidos, que ficaram conhecidos como a "Batalha de Seattle".."Podíamos ver uma grande energia a irradiar das pessoas que pediam um mundo diferente" em Génova, recorda a jornalista e ativista Nicoletta Dentico. A diretora do programa de saúde global da organização Sociedade para o Desenvolvimento Internacional e copresidente de uma federação de organizações de saúde, Geneva Global Health Hub, está hoje em Lisboa, na Culturgest (às 17h30), para falar sobre os acontecimentos de 2001, mas também sobre os movimentos sociais..A iniciativa, englobada na programação da 14.ª Festa do Cinema Italiano, é complementada com a projeção do filme Diaz - Don"t Clean Up This Blood, e traz também à capital portuguesa Lorenzo Guadagnucci. O jornalista foi fundador do Comité de Verdade e Justiça de Génova e uma das vítimas da invasão da polícia à escola Diaz, local que servia de redação a jornalistas, de local para pernoitar e de sede ao Fórum Social de Génova, uma associação que reunia um conjunto muito heterogéneo de organizações políticas, sindicais, estudantis, ambientalistas e, inclusive, religiosas. Entre elas a Médicos sem Fronteiras, de que Nicoletta Dentico era então diretora da delegação italiana.."Foi uma experiência única para uma organização humanitária que normalmente não passa muito tempo em mediações e que vai para o terreno. Pensámos que era muito importante estar lá para chamar a atenção para um problema que se mantém hoje, a falta de acesso a medicamentos essenciais e a enorme desigualdade estrutural que na altura impedia as pessoas dos países em desenvolvimento de ter acesso a medicamentos contra o VIH/sida, por exemplo, que era a pandemia de então", rememora Nicoletta Dentico.."A minha experiência foi a de ponto sem retorno na minha vida pessoal e política. Compreendi que a tensão entre as pessoas e o poder estava a levar o mundo para a direção errada. A esperança, a euforia que Génova representava e a violência a que assistimos foi um choque.".Entre a multidão compareceu uma pequena mas extremista fação, os Black Blocks. As forças de segurança italianas não terão estudado como as suas táticas violentas surtiram efeito em Seattle e preferiram atacar de forma cega manifestações pacíficas. E na última noite da cimeira conduziram o referido ataque à escola, que Dentico chama de "massacre chileno", no qual, além da violência a que sujeitaram a centena de pessoas que não ofereceram resistência, incluiu plantar provas. Os que não ficaram a receber assistência médica ou foram hospitalizados foram presos e sujeitos a tortura nos dias seguintes. Tudo isto ficou provado, mas nenhum dos polícias julgados e condenados cumpriu pena, já para não falar nas responsabilidades dos dirigentes..A Amnistia Internacional considerou as ações policiais "a mais grave suspensão dos direitos humanos na Europa desde a Segunda Guerra" e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos condenou Itália por não ter o crime de tortura tipificado (só entrou em vigor em 2017) e ao pagamento de indemnizações..Mas, mais do que um desastre que se saldou com a morte de um manifestante durante os confrontos com a polícia e centenas de feridos, alguns em estado grave, Nicoletta Dentico prefere relevar a importância do movimento alternativo. "Foi o lugar simbólico onde, de uma maneira única, convergiu a mobilização de movimentos de todo o mundo através do espetro de áreas temáticas para dizer que a globalização ali estava, mas que era a globalização errada e que o mundo precisava de uma globalização de direitos humanos. Que a receita de comércio livre e regras de mercado não estava certa, que havia outra forma para os governos se organizarem." Prossegue: "Houve uma escalada de consciencialização e de mobilização que convergiram em Génova e que tinha de ser parada, contida. Porque, como escreveu então o New York Times, era o terceiro poder global. A tensão entre esta poderosa diversidade, em sentido ascendente, e um dogma asfixiante dos poderes financeiros e económicos refletiu-se em Génova com toda a violência que as forças feudais impuseram, através da violência do Estado.".A autora do livro Richi e Buoni?, no qual denuncia o que chama de "filantrocapitalismo", isto é, a ação dos bilionários que "se põe à frente da agenda social, tentando arranjar soluções rápidas para os problemas da globalização, apenas para garantir que o sistema não muda", esteve a rever os programas das reuniões do Fórum Social de Génova e concluiu que "podiam ser exatamente iguais aos de hoje", porque então como hoje os ativistas queriam diferentes políticas para os mesmos temas prementes. "Como costumávamos dizer, um outro mundo é possível. Vinte anos volvidos, vemos que o mundo está mais impossível que então", ajuiza..Dentico denuncia o que chama de "apartheid vacinal" em relação à covid-19, "com o mundo a aceitar a criação da COVAX [programa de acesso às vacinas], estruturada de tal forma que responde às necessidades dos ricos e não dos pobres". Crê que "Génova representa a transição histórica do que era o clássico multilateralismo, a estrutura intergovernamental em que os governos tinham de facto um papel a desempenhar, para um multilateralismo de mercado no qual o setor privado lidera as soluções para os problemas que esta globalização criou"..Apesar de a luta contra "esta" globalização ter fracassado, mantém-se otimista. "Há sinais promissores vindos de Glasgow por estes dias, por exemplo. Com todas as contradições e sombras e as luzes que havia em Génova há 20 anos. Não será um caminho curto nem fácil, mas a história não acaba aqui.".cesar.avo@dn.pt