Numa das apresentações deste livro, Manuel José, reconhecido técnico de futebol, foi categórico: "Se ele [o livro] existisse em 1978, certamente eu teria sido melhor treinador." Não é dizer pouco, tanto mais tratando-se de uma aventura - fundamentada, mas sempre com margem de risco - assinada por um jornalista, por um membro de uma classe a que nem sempre os protagonistas do mundo "da bola" toleram as incursões tentadas num universo que consideram específico, mais próprio para os "iniciados" e para os que o praticam efetivamente, dentro ou fora (à volta) dos terrenos de jogo..Acrescente-se, também, que não é exagero: o trabalho de estudo, sistematização e arrumação - e há tanto aqui a rimar com paixão - do autor permite, aos leigos motivados, aos "amadores" interessados, uma nova forma de encarar este singular desporto, que é igualmente um espetáculo único e que vem conseguindo revelar a(s) ciência(s) que visam dar conta de uma prodigiosa evolução, separar o trigo do joio, somar o belo ao eficaz..Comecemos pelo que este livro não é, não quis ser, não poderia ser, conhecendo-se o estilo de comunicação televisiva (mas não só) de quem o escreve: algo que se deixe prender na rede, pegajosa, peçonhenta, ameaçadora, do "baixo futebol", no sentido que costuma designar, por exemplo, a "baixa política". Por uma vez, a arbitragem não aparece tratada como um vírus, agitada amiúde para explicar erros e deficiências que nada têm a ver com o apito. Ficam de fora as teorias da conspiração ou os arranjinhos, não têm lugar as provocações incendiárias. Aqui - embora se conclua que o melhor acaba mesmo por ser jogar com a bola na relva, apenas com intervalos escolhidos para andar pelos ares -, não há "jogo rasteirinho". Bem pelo contrário, se há uma lição "filosófica" a tirar deste Futebol a Sério, é que se ganha muito mais com a atitude positiva que preside a estas páginas..O isco das memórias comuns.Torna-se necessário ir mais longe: este é - para quem goste de futebol (e não só de um clube ou de uma seleção), para quem não passe os 90 ou os 120 minutos com os olhos fixos na bola (eis um dos ensinamentos mais singelos mas mais duradouros desta obra: o de que há muito jogo onde a bola não está), para quem quiser perceber, de uma forma abrangente, aquilo que vê, aplaude, assobia, que o faz vibrar ou amuar - positivamente fascinante. Porque nos transporta, de forma sábia, calculada, "treinada", do império das memórias para um domínio de conhecimento que implica estudo, interpretação e "tradução"..O autor lança o isco, discorrendo, com uma escrita tão sólida como entusiasmada e contagiante, sobre os denominadores comuns, sobre aqueles jogadores e técnicos, aquelas equipas e seleções, que guindaram o futebol a um estatuto que, por muito que isso doa aos mais céticos, se aproxima "perigosamente" da Arte. Lá vamos nós à Hungria e a Di Stéfano, a Pelé e ao Brasil de 1970, à Laranja Mecânica de Cruyff (que há de reaparecer entre os treinadores "revolucionários"), ao Brasil-poema de 1982, às equipas que dominam, nos resultados mas também no espetáculo, os últimos anos, com destaque natural para o Barcelona e para o Bayern de Guardiola..Acontece que Carlos Daniel não se coíbe, com proximidade corajosa, de trazer de volta os violinos de Alvalade, o Benfica de Eusébio, o FC Porto de Pedroto (e depois de Artur Jorge), a magia do trio Oliveira-Manuel Fernandes-Jordão, a influência de Eriksson, o salto em frente com Mourinho (mais tarde com Villas-Boas), a avalancha do Benfica de Jorge Jesus. Sem meias-palavras e sem uma só tentação de escrever "para o empate"..Mais adiante, observará - à luz do conhecimento e da experiência, dos saberes adquiridos - para as quatro equipas que melhor se classificaram na temporada recém-terminada da nossa Liga: o Benfica de Rui Vitória, o Sporting de Jorge Jesus, o FC Porto de José Peseiro e o Braga de Paulo Fonseca. O que lhe permitirá, se for caso disso, voltar à mesma obra-base em épocas futuras, seguindo - em eventuais próximas edições - as vantagens de tratar a atualidade..As "lentes de contacto".Pelo meio, vai ficando o recheio, o miolo, o fator distintivo (ou ainda mais "sério", se preferirem) do livro. Sem academismos mas sem facilitismo (nem sequer na terminologia utilizada), Carlos Daniel vai municiando o leitor e espectador, no estádio ou na TV, com as armas de que este necessita para evoluir do nível "chuta para a frente" para a dimensão de observador mais atento do fenómeno do futebol jogado..Conduz-nos, numa viagem acessível mas que carece de atenção, desde os primórdios da tática, da "pirâmide clássica" e do célebre WM até à forma como jogam hoje as melhores equipas da atualidade. E até do entendimento, nunca estático, que se faz do treino, que deixou de ser "analítico", passou por "integrado", e hoje desagua num conceito em que só o nome - depois de ler e de ficar a saber que é, ainda por cima, "um saber português" - assusta: a "periodização tática". Num espírito de verdadeiro manual, em que não há sentenças absolutas mas pistas bem desenhadas para a discussão, vai encaixando os modelos, os sistemas (não, não é a mesma coisa), as dinâmicas, as estratégias, em exemplos que podemos testemunhar nas equipas que vemos jogar nos nossos dias..O segredo do livro pode, afinal, estar neste facto, sempre confirmado ao longo das páginas que se vão virando tão depressa como o jogador Poborsky chegava de uma baliza à outra: tudo, da ciência às conquistas, da "ideia" aos destaques individuais e coletivos, nos é apresentado com uma imensa paixão. Há pedaços desta obra que parecem prosa poética, mas nunca se afastam do rigor de um analista que nunca prescinde da lucidez, paredes-meias com o entusiasmo. Melhor do que isto, só mesmo se Futebol a Sério trouxesse consigo um DVD para irmos seguindo, no campo, os protagonistas, os heróis, os campeões. Mas, com a facilidade hoje revelada no acesso às imagens, isso já fica com cada um, numa espécie de "trabalho para casa".