Futebóis, Cicciolina e outras histórias do Parlamento
José Cesário está a contar sobre aqueles tempos em que os deputados não recebiam o salário por transferência bancária e um contínuo andava pelo hemiciclo a distribuir envelopes com os cheques. O ritual que se repetia todos os meses obrigava a que os deputados dessem uma "gorjeta generosa" ao funcionário. Está o deputado do PSD perdido nestas lembranças quando é interrompido pela socialista Rosa Albernaz, que lhe pergunta se se lembra de não terem plenário à quarta-feira à tarde e alugarem uma camioneta para irem jogar à bola. Ele acha que só foi uma vez. Era um momento de descontração e divertimento para os jovens deputados - muitopoucas mulheres, que, mesmo assim, se entretinham a eleger o deputado com as pernas mais bonitas.
Rosa Albernaz e José Cesário foram eleitos pela primeira vez na III legislatura quando Mário Soares e Mota Pinto formaram o governo de bloco central (1983-85), e são dos deputados mais antigos ainda em funções. Desde que entraram pela primeira vez em São Bento até aos dias de hoje muita coisa mudou - o número de deputados baixou de 250 para 230 e 12 governos tiveram de dar contas àquela câmara. Ainda hoje se sentam no plenário dois deputados da constituinte - o líder do PCP e o socialista Miranda Calha.
Se nos situarmos apenas desde a constituinte, muitas personagens já passaram pela Assembleia da República. Muitas histórias o hemiciclo, as salas de comissões e os corredores teriam para contar. Há histórias de noites longas, de debates animados, de visitantes atrevidos...
Nesta conversa sobre o que tem vindo a mudar no Parlamento, são António Filipe (PCP), José Cesário (PSD) e Rosa Albernaz (PS) que recordam os seus primeiros tempos no Parlamento e falam de como a forma de fazer política mudou. E mudou muito, conforme veremos. Mais que não seja porque a política e o jornalismo sempre andaram de mãos dadas e se a pressão mediática, imposta pelo mercado televisivo e pelos onlines, pede reações na hora, os deputados tiveram de se adaptar.
Antes, como recorda José Cesário - que entrou com 24 anos no Palácio de São Bento e tem sido eleito ininterruptamente mesmo tendo sido chamado a funções governativas como secretário de Estado -, havia mais tempo para se preparar as reações em conferências de imprensa, com reuniões da bancada parlamentar para antecipar o que se ia dizer. Esta "agitação", recorda, começou com o advento das rádios locais.
Quem recebeu de braços abertos os novos canais de televisão - desde 2002 também há o Canal Parlamento - foi o PCP. António Filipe explica porquê: a única câmara de televisão era a da RTP, que filmava a partir da bancada de imprensa. Ora, pela geografia do hemiciclo, à frente fica a bancada do PCP, o que quer dizer que os deputados comunistas nunca era filmados de frente. "O país só conhecia a nuca dos deputados do PCP. Não aceitávamos isso e íamos à tribuna fosse para o que fosse, nem que fosse para uma interpelação. Decidiram que era chato e passou a haver duas câmaras."
António Filipe chega ao Parlamento em 1989, em plena maioria absoluta de Cavaco Silva. Mas só entra a meio da legislatura, para o lugar de Rogério Moreira. Oficialmente, contudo, ficou registado no Diário da Assembleia da Repúblicacomo substituto de um deputado ilustre, Álvaro Cunhal, o histórico líder do Partido Comunista.
É a discussão mais escassa dos temas que António Filipe elege como uma das grandes mudanças. "Mudou muita coisa na forma de fazer política. Discutia-se mais longamente cada matéria, as leis levavam vários dias em plenário. O debate legislativo foi muito reduzido. Discute-se com três minutos a cada partido o que antes se levava tardes inteiras a discutir."
São apenas meia dúzia de anos que separam a entrada de José Cesário e Rosa Albernaz da chegada de António Filipe, mas as diferenças já são muitas. Na legislatura iniciada em 1983 com Mário Soares à frente ainda se passavam noites inteiras no plenário, em discussões acesas, com grande parte dos então 250 deputados a fumarem cigarro atrás de cigarro. "Quando entrava no hemiciclo, a sensação que tinha era de que estava nas ruas de Londres com um enorme nevoeiro - conta Albernaz -, os plenários duravam até de madrugada. Faziam uma pausa ligeira para o pequeno-almoço e começava-se um novo dia."
Quando o plenário terminava a altas horas da noite e varados de fome, lembra José Cesário, iam ao Elefante Branco ou ao Hipopótamo comer um belo bife - "íamos ao Jardim Zoológico, conta a rir, às vezes as poucas mulheres deputadas diziam que também queriam ir, mas lá explicávamos que ao Jardim Zoológico não nos podiam acompanhar..."
Rosa Albernaz lembra-se disso. Também chegou a ser informada de que não podia acompanhar os colegas homens. Mas nos jogos de futebol das quartas-feiras à tarde marcava sempre presença. Alugava o autocarro de 60 lugares para levar "as equipas" e comprava perto da assembleia um penico que servia de taça para os vencedores erguerem.
Quando Cesário entrou, com 24 anos, para o Parlamento, havia pouquíssimas mulheres. "Era literalmente um quartel, nas bocas, nos comentários... A Assembleia é o retrato da sociedade, é e será. A entrada de mais mulheres para o Parlamento mudou os temas e o espírito", sustenta José Cesário.
Era um Parlamento praticamente masculino. "Os debates eram vivos, marcantes e sem tempo de duração. Lembro-me bem dos debates sobre a lei da maternidade/paternidade, a lei sob a interrupção voluntária da gravidez (IVG), os debate sobre as leis laborais e a aprovação do SNS", diz Rosa Albernaz. "Como se vivia intensamente os debates, houve um episódio que me marcou. Estávamos a ouvir o primeiro-ministro, que era na altura o Mário Soares, e um deputado da oposição arrancou a tampa da sua bancada e atirou-a contra a bancada do governo. Foi nesse dia que pregaram as tampas das bancadas para que não se voltasse a repetir."
"A vivência política era diferente, era o espírito das RGA (Reunião Geral de Alunos), dos movimentos associativos e da vida sindical que imperava aqui dentro. Com o fim da ditadura havia mais gente a participar na vida pública", recorda, por seu turno, José Cesário.
Eram também os tempos em que a retórica parlamentar era mais trabalhada: "Tínhamos de convencer pelo conteúdo mas também pela forma. Era impensável alguém ser presidente do grupo parlamentar sem ser um grande orador. Ou era impensável alguém fazer uma pergunta por escrito", diz o deputado que desde 2005 é eleito pelo círculo fora da Europa. Eram tempos de grandes tribunos e, entre eles, José Cesário elege Ângelo Correia e Almeida Santos, Mário Soares e António Guterres. E mais tarde Durão Barroso, "com uma visão mais completa da sociedade e do mundo".
E havia também Natália Correia. Célebre ficou o poema que fez para o deputado do CDS João Morgado, "O Coito do Morgado", mas isso foi em 1982. Cesário lembra-se de ter tido um quiproquó com ela por estar a acusar o governo de obrigar os professores a venderem a própria roupa. Mas isso não o impedia de ir algumas vezes ao Botequim, o bar que a deputada tinha na Graça, "onde ela e o Dórdio dissertavam e começaram muitos amores". Como na Assembleia, diz, mas isso é outra conversa...
António Filipe usa o dito popular "mais vale cair em graça do que ser engraçado" para se referir à deputada então do PRD. "Ela simpatizava comigo. Um dia um colega passou por mim e disse-me 'então ó jovem'. E eu respondi-lhe 'até parece que estás a usar um termo pejorativo. Ela ouviu e considerou aquilo execrável." A partir daí, a poetisa passou a gostar muito de António Filipe, que a considera "uma personagem interessante".
O deputado comunista lembra-se da discussão do orçamento para a construção do Centro Cultural de Belém (CCB), na primeira comissão que presidiu. Natália defendia que o dinheiro para as obras do CCB deviam sair das obras públicas e não da Cultura, mas não se entendia com o deputado do PRD que tratava das questões orçamentais. Então, saiu da sua bancada e foi pedir ao comunista Octávio Teixeira que a ajudasse a elaborar a proposta. "Ao dar conta disso, o deputado do PRD aproxima-se mas ela correu com ele - 'não quis fazer, vá-se embora, agora vá-se embora!'"
Em 30 anos e mais de vida parlamentar muitos debates marcaram estes deputados. Uns pela importância formal, outros por serem episódios mais picarescos. Cesário elege o debate e aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo, que lhe foi especialmente caro porque vinha da JSD, ou o fim do serviço militar obrigatório (SMO). Mas também se lembra do dia em que a estrela porno e deputada italiana Cicciolina visitou as galerias do hemiciclo e deixou toda a gente de boca aberta quando baixou a blusa e deixou um peito à mostra... "Causou um grande sururu, para uns foi um escândalo, outros fartaram-se de rir..."
António Filipe recorda-se sobretudo dos debates sobre a interrupção voluntária da gravidez, nomeadamente aquele que teve uma votação tangencial, porque viria a ser determinante para viragem posterior: "Odete Santos teve um papel extraordinário, até pelo dramatismo." Mas naqueles em que interveio diretamente elege a lei da droga, "que se revelaram uma evolução social muito grande". "Os debates fraturantes são muito mediatizados e têm essa projeção pública, mas o que traz mais gente às galerias são as questões laborais." E de outro momento de grande agitação: quando Jaime Gama chamou Bokassa a Alberto João Jardim...