Frida, a mulher dentro do quadro
Já muito se revisitou a figura de Frida Kahlo (1907-1954) em livros e documentários, passando pelo biopic com Salma Hayek e até mesmo uma animação da Disney, Coco, onde a vislumbramos no mundo dos mortos. E, no entanto, ainda há espaço para desbravar o mito e aperfeiçoar o conhecimento sobre uma das mais icónicas artistas da era moderna. Que é como quem diz: ir mais fundo na ligação que existe entre o que se vê na pintura e a história de um corpo em permanente condição de dor, que se fez arte. Frida - Viva la Vida, de Giovanni Troilo, o documentário que hoje se estreia nos Cinemas UCI El Corte Inglés (Lisboa) e UCI Arrábida 20 (Gaia), chegando depois à sala do Cinema da Villa (Cascais), para ser visto até ao dia 26, procura essa ligação na dualidade íntima representada nos seus vários autorretratos, dos quais o famoso quadro As Duas Fridas é o exemplo acabado.
Com o testemunho de especialistas e historiadoras de arte, entre as quais a diretora do Museu Frida Kahlo - mais conhecido como Casa Azul -, o documentário examina a biografia da artista mexicana num constante diálogo com as suas obras e artefactos. Frida tinha apenas 18 anos quando um acidente de autocarro a prendeu à cama durante meses e ditou o sofrimento de uma vida inteira. Deitada num leito de dossel, com um espelho embutido na parte de cima, ela começou a pintar o autorretrato como forma de encontrar na sua própria figura dentro do quadro ("Eu sou minha única musa, o assunto que conheço melhor") uma qualquer forma de libertação da dor física. Essa que se tornaria o seu tema pictórico, fosse pela referência aos graves problemas de coluna ou aos abortos que sofreu. Cada uma das suas pinturas é a prova de que a dor, nela, não era uma questão artística romântica - pintar veio preencher tudo aquilo que a vida dolorosamente lhe tirou.
Para falar disso e de muito mais, Asia Argento surge como a simbólica narradora convidada que, olhando a câmara de frente, conduz o documentário nas suas diferentes fases biográficas (estas intercaladas por breves encenações de duas jovens que encarnam a dualidade interior de Frida). A atriz italiana é assim a voz feminista responsável por situar cada momento da vida da artista num mapa de conquistas progressivas, ainda que quase sempre debaixo da sombra do marido, o artista Diego Rivera.
A ironia do subtítulo, Viva la Vida, expressão inscrita numa fatia de melancia no derradeiro quadro de Frida Kahlo, torna-se particularmente desconcertante quando se chega ao fim da viagem desta mulher com a plena consciência da angústia do seu corpo, em contraste com a sua fúria de viver. A certa altura, a diretora da Casa Azul fala de como Frida, parcialmente descendente de indígenas e apaixonada pelo imaginário cultural, descobriu nas roupas e nas joias mexicanas o prazer de trabalhar a sua própria imagem pública. Quem visitar o seu museu, na Cidade do México, poderá perceber então como os objetos que a ornamentaram também contribuem para o puzzle de uma intimidade que continua a fascinar. São relíquias de uma santa.