Fraude com fundos comunitários na mira da primeira procuradora-geral da UE

O Guardian chamou-lhe "a procuradora que anda a arrancar escalpes" depois de as suas investigações anticorrupção terem levado à detenção de altos oficiais e governantes na Roménia. Agora, Laura Kövesi surge como o nome de consenso entre o Parlamento Europeu e o Conselho para ser a primeira a encabeçar o recém-criado Gabinete do Procurador-Geral Europeu.
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Laura Kövesi foi a primeira mulher a ocupar o cargo de procuradora-geral da Roménia aos 33 anos. Agora, aos 46, prepara-se para ser a primeira mulher a ocupar pela primeira vez o recém-criado cargo de procuradora-geral da União Europeia. Num voto indicativo informal, esta quinta-feira, os embaixadores dos Estados membros junto da UE aprovaram o seu nome. Dos 22 países em causa, só cinco não votaram a favor da também ex-procuradora da direção nacional anticorrupção romena. O DN tentou saber, junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros e da Justiça, qual foi o sentido de voto de Portugal, mas não obteve resposta até ao momento.

No início do ano, Kövesi, ex-jogadora profissional de basquetebol formada em Direito, obteve luz verde do Parlamento Europeu. Mas, entretanto, deparou-se com a oposição de vários países, incluindo o seu, que mostraram preferência pelo candidato francês, Jean Francois Bohnert, para este novo alto cargo europeu. Este foi, no entanto, nomeado para procurador nacional para os assuntos financeiros em França, no final de julho, desistindo Paris da corrida.

Kövesi precisa dos votos favoráveis dos Estados membros da UE e do novo Parlamento Europeu. A 18 de julho, o novo presidente do Parlamento Europeu, o italiano David Sassoli, reiterou que a romena era a candidata dos eurodeputados. "Antes da reunião informal de ministros da Justiça e dos Assuntos Internos em Helsínquia, o Parlamento deseja renovar o seu compromisso com Laura Codruţa Kövesi enquanto candidata do Parlamento Europeu a procuradora-geral da UE. É fulcral que a investigação e acusação de alegados crimes contra o orçamento comunitário sejam rapidamente asseguradas", lê-se numa carta enviada pelo presidente do Parlamento Europeu ao Conselho da UE.

De acordo com o artigo 14.º do Regulamento que estabelece o Gabinete do Procurador-Geral Europeu, "o Parlamento Europeu e o Conselho devem nomear, de comum acordo, o procurador-geral europeu para um mandato de sete anos não renovável. O Conselho agirá por maioria simples. A nomeação do procurador-geral é codecisão entre o PE e o Conselho".

Ska Keller, alemã que lidera o grupo dos Verdes no Parlamento Europeu, foi das primeiras a reagir: "Notícias fantásticas: Laura Kövesi foi escolhida para liderar o Gabinete do Procurador-Geral Europeu apesar de todos os esforços feitos pelo governo romeno no sentido de impedi-la de se tornar procurador-geral da UE. Ao escolher Kövesi, a UE está a enviar uma mensagem muito forte na sua luta contra a corrupção e a favor do Estado de direito na Europa! Parabéns!"

A procuradora que andou a "arrancar escalpes" na Roménia

Natural de Sfantu Gheroghe, numa região em que a etnia húngara é maioritária, estudou em Medias, Sibiu. Aí chegou a jogar basquetebol profissional. Entre 1991 e 1995 estudou Direito na Universidade Babes Bolyai, em Cluj-Napoca, tendo completado, em 2012, um doutoramento em Direito, com tese na luta contra o crime organizado.

Em 2006, Monica Macovei, ex-eurodeputada eleita pela Roménia, sugeriu-a para procuradora-geral quanto era ministra da Justiça daquele país da UE. O então presidente romeno, Traian Basescu, aceitou a nomeação. Kövesi tornou-se, assim, a primeira mulher procurador-geral na Roménia e a mais nova de sempre. Tinha apenas 33 anos. Obteve um segundo mandato em 2009 e deixou o cargo a 2 de outubro de 2012.

No ano seguinte, em maio, foi nomeada procuradora da direção nacional anticorrupção romena (DNA) pelo ex-primeiro-ministro social-democrata Victor Ponta. E, mais uma vez, Basescu aceitou a sua nomeação. A DNA é uma unidade especial criada para investigar crimes de corrupção de alto nível e, no tempo de Kövesi, chegou a investigar o próprio Ponta e o irmão do chefe do Estado romeno que a nomeou em todas as ocasiões.

Apesar de criada em 2002, a DNA atingiu o seu auge sob o comando de Kövesi, a qual ordenou o lançamento de investigações contra centenas de altos responsáveis romenos. Em 2014, esta instituição conseguiu que o ex-primeiro-ministro Adrian Nastase fosse condenado a quatro anos de prisão. E que vários ministros, deputados, líderes políticos regionais conhecidos como barões locais fossem parar atrás das grades.

A forma implacável como a ex-basquetebolista liderava aquela instituição anticorrupção fez com que mais pessoas confiassem na DNA do que no Parlamento - a relação era, em 2015, de 60% para 11%, fez com que embaixadas estrangeiras em Bucareste - como a dos EUA - apoiassem publicamente o seu trabalho e fez com que media internacionais como o The Guardian escrevessem artigos dedicados a si. "Arrancar até os escalpes: a mulher que está a liderar a luta contra a corrupção na Roménia", titulou o jornal, num artigo publicado em novembro de 2015.

"Na Roménia, antes de 2005, a justiça não era independente. É por isso que não houve coragem suficiente para lançar investigações complexas contra altos oficiais. Considero que a ação da DNA mudou a mentalidade dos cidadãos romenos. Agora estão conscientes de que não são obrigados a pagar subornos para ver garantidos os seus direitos", declarou àquele jornal britânico a então procuradora da direção nacional anticorrupção.

Em 2016, Kövesi viu o seu mandato ser renovado, mas também viu os seus problemas começarem. Foi nesse ano que o Partido Social-Democrata (PSD) subiu ao poder e o seu líder, Liviu Dragnea, tornou-se o principal opositor de Kövesi. Dragnea fora condenado por fraude eleitoral, em 2015, na sequência de uma investigação levada a cabo pela DNA. Acabou por ir parar à cadeia, em maio já deste ano, para cumprir três anos e meio de pena de prisão.

A coligação entre os sociais-democratas do PSD e os liberais do ALDE (estes saíram, entretanto, do governo) começou a mudar as leis e o código penal para tornar mais difícil a investigação de políticos por parte dos procuradores. A DNA reagiu dizendo que isso iria tornar a luta contra a corrupção menos eficaz e as pessoas saíram à rua em protesto em 2017. Nesse ano a instituição foi atingida por uma série de escândalos que foram ao ponto de divulgar conversas em que Kövesi pedia aos procuradores que investigassem mais depressa e fossem atrás do primeiro-ministro. Ela alega que as gravações foram editadas e as afirmações retiradas do contexto em que foram proferidas.

Em fevereiro de 2018, o então ministro da Justiça da Roménia, Tudorel Toader, deu início a um procedimento para remover Kövesi do cargo que ela ocupava, acusando-a de manchar a imagem do país no exterior, ao denunciar que a coligação no governo tinha por objetivo travar os esforços na luta contra a corrupção. O presidente romeno, Klaus Ioahannis, demorou a responder ao pedido do ministro, mas o Tribunal Constitucional acabou por obrigá-lo a fazê-lo, em julho de 2018. O resultado foi a demissão de Laura Kövesi de procuradora da direção nacional de luta anticorrupção. Em dezembro desse ano, candidatou-se ao cargo de procuradora-geral europeia. Aí, mais uma vez, o governo social-democrata do seu país tentou travá-la. Quase ia conseguindo. Mas no final falhou.

Na atual Comissão Europeia de Ursula von der Leyen, a comissária designada pela Roménia suscita algumas dúvidas devido a suspeitas de corrupção que pairaram sobre si no passado. O eurodeputado liberal alemão Jan-Christoph Oetjen, que é vice-presidente da comissão de Transportes no Parlamento Europeu, expressou "sérias dúvidas" em relação à nomeação de Rovana Plumb para a pasta de comissária dos Transportes. "Sérias dúvidas sobre a nomeação de Rovana Plumb como comissária dos Transportes para a Comissão de Ursula von der Leyen. Ela deve dar explicações acerca do caso Belina", escreveu o político alemão no Twitter, referindo-se a um caso que implicou a transferência ilegal da ilha de Belina no Danúbio para a alçada das autoridades de Teleorman (que a devolveram posteriormente). Rovana Plumb era na altura ministra do Ambiente da Roménia.

Como, porquê e para que foi criado o Gabinete do Procurador-Geral Europeu?

Após proposta inicial da Comissão Europeia, em 2013, 16 Estados membros da UE lançaram, em abril de 2017, uma cooperação reforçada com vista a lutar contra a fraude em detrimento da UE. Decidiram, por isso, criar uma Procuradoria Europeia. A cooperação reforçada é uma figura que permite a uns Estados avançar mais depressa em alguns níveis da integração europeia e, conforme previsto nos termos dos Tratados da UE, deve contar pelo menos com nove países.

Estando a cooperação reforçada sempre aberta à entrada de novos países, hoje em dia o número de Estados membros participantes aumentou para 22. Entre eles está Portugal. Uma vez operacional e em funcionamento, o que se prevê acontecer em 2020, a procuradoria europeia terá poderes para investigar e exercer ação penal relativamente a crimes que lesem o orçamento da UE, nomeadamente: fraude, corrupção, branqueamento de capitais e fraudes transfronteiras com IVA.

Segundo dados disponíveis no site do Conselho da UE, os Estados membros indicaram que perderam no mínimo 50 mil milhões de euros todos os anos em receitas de IVA devido à fraude transnacional. E assinalaram igualmente que cerca de 638 milhões de euros dos fundos estruturais da UE foram indevidamente utilizados em 2015.

Até agora, estes crimes apenas podiam ser investigados pelas autoridades nacionais. Sucede porém que a sua jurisdição acaba nas fronteiras nacionais, o que limita os instrumentos ao dispor dos procuradores nacionais para lutarem contra a grande criminalidade financeira.

Do mesmo modo, os organismos existentes da UE, como o Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF) ou a Unidade Europeia de Cooperação Judiciária (Eurojust), não podem abrir investigações ou ações penais nos Estados membros. A Procuradoria Europeia contribuirá para corrigir estas deficiências e reprimir as infrações lesivas dos interesses financeiros da UE.

Carl Dolan, diretor para a área de combate à corrupção da ONG Transparency International na UE, considera que o Gabinete do Procurador Geral Europeu, que terá sede no Luxemburgo, é uma coisa muito boa. "É uma resposta a um problema que existe na Europa. O OLAF pode fazer investigações sobre corrupção e fraude, mas não pode acusar ninguém", declarou em fevereiro, à Euronews.

No início de setembro, o OLAF revelou que está a investigar por fraude o polaco Janusz Wojciechowski, nomeado para comissário da Agricultura por Ursula von der Leyen. A investigação tem que ver com dinheiros europeus usados pelo candidato quando foi eurodeputado, entre 2004 e 2016. Também a comissária francesa, Sylvie Goulard, teve que devolver 45 mil euros ao Parlamento Europeu num caso relativo a um emprego fictício de assistente parlamentar.

Na nova Comissão liderada pela alemã Ursula von der Leyen, a pasta relativa à atribuição e distribuição dos fundos comunitários estará nas mãos da portuguesa Elisa Ferreira, a até agora vice-governadora do Banco de Portugal que foi nomeada comissária europeia para a Coesão e Reformas.

Como é que vai funcionar a procuradoria europeia liderada por Laura Kövesi e quem são os três candidatos portugueses ao lugar de procurador europeu nacional?

A instituição de uma procuradoria europeia procura funcionar como instância única em todos os Estados membros participantes na cooperação reforçada. É um órgão da União Europeia independente e indivisível, instituído como entidade única, mas com uma estrutura descentralizada, sendo, por essa razão, organizada a nível central e a nível local, nos diversos países da UE.

O nível central é constituído por um procurador-geral europeu, que preside à procuradoria europeia e ao colégio de procuradores europeus, pelas câmaras permanentes e pelos procuradores europeus, enquanto o nível descentralizado é constituído pelos procuradores europeus delegados sedeados nos Estados membros.

O regulamento que cria a procuradoria prevê que o colégio seja constituído por um procurador europeu de cada país participante, competindo a cada Estado membro a designação de três candidatos e ao Conselho a sua seleção e nomeação. No caso de Portugal, os três candidatos que ficaram apurados são: José Eduardo Moreira Alves de Oliveira Guerra, João Conde Correia dos Santos e Ana Carla Mendes de Almeida.

Os procuradores europeus delegados estão localizados e atuam diretamente nos Estados membros, embora façam parte integrante da procuradoria europeia. Agem exclusivamente em representação da procuradoria europeia e em seu nome quando investigam e instauram ações penais no âmbito da competência daquela entidade, sublinha o site do Ministério da Justiça português.

Assim sendo, torna-se necessário, à luz do regulamento que seja concedido aos procuradores europeus delegados, pela lei nacional, um estatuto funcional e juridicamente independente, consagrando as necessárias garantias de independência face a outros órgãos nacionais.

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