Fotografia e amor para recordar o Portugal de 1972

Com o cuidado de quem não só protege o papel antigo mas, também, a memória, Maria do Rosário e António falam sobre uma Lisboa que era muito lisboeta e um Barreiro que fervia, num tempo em que homens e mulheres questionaram os dogmas da Igreja e a imposição da Guerra Colonial e trilharam novos caminhos na universidade e na vida profissional.
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Há 50 anos, numa tarde de julho de 1972, Maria do Rosário Soares e António Pinto das Neves corriam para se abrigar da chuva, durante uma tarde de compras nas vésperas do seu casamento, quando a lente do Diário de Notícias os apanhou. No verão de 2022, com recorde de altas temperaturas, em democracia e perante uma guerra na Europa, a partir da sua casa no Barreiro e de fotografia na mão, o casal recorda a época eternizada pelo jornal.

Uma das primeiras mulheres bacharéis em Psicologia do Trabalho em Portugal, formada pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada e um ex-seminarista e ex-oficial do Exército, representaram gerações em mudança numa capital e num país ainda fechados sobre a ditadura do Estado Novo.

"Lisboa era vibrante, o comércio local era a vida da cidade, desde a Baixa até às Avenidas. Mas era uma Lisboa dos lisboetas, não tinha a multiculturalidade de hoje", recorda Maria do Rosário, nos seus 88 anos. "Até porque, a nível internacional, não éramos vistos como um país simpático, mantínhamos o Ultramar e muitos jovens politicamente ativos emigravam ou desertavam para França e Alemanha", completa António, com 78 anos de longas memórias.

Neste ambiente marcado pela Guerra Colonial, por pouco as vidas do casal não se cruzavam e não teriam sido pais de três filhos e avós de cinco netos.

António gostava de ter conseguido abraçar a vocação de padre missionário, no Ultramar. Começou a preparar o caminho aos 17 anos, quando deixou os pais e dez irmãos em Sobral de São Miguel, na Covilhã, para ingressar no seminário em Régua, depois em Barcelos. Desse tempo restaram as memórias e o livro "O que se perdia se eu tivesse sido padre...".

Em 1970, numa época marcada por grandes convulsões na Igreja, entre correntes de modernização e tradicionalistas, surge a crise de fé de António. Deixou o seminário aos 25 anos e enfrentou o Serviço Militar Obrigatório, mesmo sabendo que poderia passar pela Guerra Colonial.

Distante da guerra geográfica e ideologicamente, António aplicou-se para ser um dos melhores do Curso de Oficiais Militares da Escola Prática de Infantaria, em Mafra, só assim podia escolher onde ficar colocado. "Queria ficar em Lisboa para acompanhar os irmãos que iam chegando da aldeia para estudar. E assim também podia acompanhar uma irmã doente que precisava de assistência médica constante", recorda. Além dessas responsabilidades, durante o ano e meio em que esteve no Serviço Militar, ainda viria a frequentar o curso de Gestão de Empresas, no Instituto de Novas Profissões.

O esforço para ser um dos primeiros valeu-lhe a colocação na Escola Prática do Lumiar, com funções de secretariado. Um castigo que mudou tudo.

Durante um simulacro de ataque, o aspirante faltou à formatura, porque visitava a irmã no Hospital de Santa Maria. Como castigo foi transferido para o Regimento de Cavalaria de Santarém. Não ficou lá muito tempo, tendo passado à reserva e se dedicado ao ramo imobiliário. Os poucos meses que passou em Santarém foram, no entanto, suficientes para marcar a sua vida. Ali conheceu Maria do Rosário e "o amor à primeira vista nasceu à janela", quando a viu passar na rua. Até esse momento os dois seguiam rotas opostas.

Nascida numa família de migrantes algarvios fixados no Barreiro, Maria do Rosário cresceu num caldo cultural muito diferente de António, "no centro de uma cidade com milhares de operários da CUF, a fervilhar de vida cultural, associativa e política".

A jovem estudou no Magistério em Lisboa e chegou a ser professora primária, até ingressar no ISPA, formar-se psicóloga e candidatar-se a um cargo no Instituto de Emprego e Formação Profissional que a levou até Santarém. Em 1972, quando conheceu António, a sua vida estava dividida entre as viagens diárias Barreiro-Santarém-Barreiro.

Com cinco irmãos e filha de um empregado na Imprensa Nacional-Casa da Moeda e de uma dona de casa, Maria do Rosário recorda "uma vida dura em Portugal, onde o Barreiro não era exceção, apesar de ter muitas fábricas, trabalho disponível e oportunidades para estudar".

Na sua memória ficaram os efeitos da II Guerra Mundial. "No Barreiro as filas para comprar alimentos e carvão com as senhas de racionamento eram enormes" e quando alguma coisa acabava era preciso encontrar alternativa. "Se não havia carvão, por exemplo, utilizava-se serradura". Às vezes a estratégia era montada para os alimentos e "uma irmã mais nova levava uma chávena pequena ao leiteiro e pedia para ele encher para o gato, depois juntava-se ao resto do leite que havia em casa".

Jovem adulta, na década de 1960 e mesmo depois de casada, já a viver no Barreiro, em 1973, guardou "o barulho das carrinhas que vinham prender ativistas políticos ao Barreiro e os gritos das torturas".

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