"Não queria fazer um mafioso tipo Scarface, mas um homem de negócios"
Já foi Charlie Parker, o saxofonista, num filme de Clint Eastwood (Bird), vestiu a pele de um samurai dos tempos modernos num filme de Jim Jarmusch (Ghost Dog), recebeu um Óscar pela interpretação do ditador do Uganda Idi Amin (O Último Rei da Escócia), espera-se que surja ainda neste ano nas salas de cinema como reverendo C. L. Franklin, pai de Aretha Franklin, no biopic da cantora (Respect) com estreia prevista para o verão, e pode agora ser visto como gangster mor na série Godfather of Harlem, disponível no Star, a "sala adulta" do Disney+. Forest Whitaker é um dos grandes atores afro-americanos de Hollywood, rosto de uma melancolia persistente que só de quando em vez dá lugar a um sorriso aberto. Essa melancolia encaixa bem na personagem real de Bumpy Johnson (1906-1968), um homem de contradições, mafioso e poeta, que aqui se contempla a partir da fase final da vida, quando, em 1963, após uma década encarcerado na prisão federal de Alcatraz, regressou ao Harlem tentando recuperar o controlo do seu território, na altura sob o domínio do gangster ítalo-americano Vincent Gigante (Vincent D'Onofrio).
Antes de se tornar o protagonista da série, Whitaker assumiu logo o papel de produtor. Ir ao coração do bairro nova-iorquino do Harlem em plenos anos de 1960 afigurava-se uma viagem no tempo premente aos olhos da contemporaneidade, tal como referiu na entrevista virtual em que o DN participou: "Envolvi-me com o projeto ainda antes de haver um argumento, e nessa fase a ideia era que esta história, por um lado, nos desse o modo como as pessoas perseguem o sonho americano, como perseguem a felicidade, e, por outro, uma imagem da imigração, da comunidade negra do Harlem, os irlandeses, os italianos - e de como por vezes não lhes restava alternativa senão a criminalidade. Era a hipótese de terem alguma qualidade de vida. A isso juntava-se a questão de como o movimento dos direitos civis fala aos dias de hoje, a mensagem de Malcolm X e a luta pela igualdade. Era nisso que estava interessado."
Para além de focar a diversidade cultural do bairro, Godfather of Harlem apanha Malcolm X na fotografia. Na verdade, das várias abordagens que o cinema já fez a Bumpy Johnson - por exemplo, em Cotton Club (1984), de Francis Ford Coppola, Hoodlum (1997), de Bill Duke, ou Gangster Americano (2007), de Ridley Scott -, a amizade com o ativista negro nunca esteve no radar. Ora, na série, o regresso de Johnson marca o estreitamento dessa relação (que remonta aos anos 1940) à luz de uma imperativa união de esforços. Entenda-se: na mesma medida em que o gangster queria voltar a ser o chefe absoluto da máfia do Harlem, controlando o comércio de narcóticos, Malcolm X (Nigel Thatch), ex-traficante e então ícone mundial, queria limpar as ruas que a máfia italiana convertera num calvário de heroína. Um tinha as armas, o outro tinha os "soldados" do grupo político e religioso Nação do Islão. Foi esta a aliança que se estabeleceu, em cheio, no contexto da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos.
A ligação à causa de Malcolm X corresponde também a uma postura respeitosa de Bumpy Johnson, em contraponto a toda a brutalidade inerente às transações do submundo. Whitaker interpretou-o por aí: "Eu queria que ele fosse um banqueiro, num certo sentido. Não o tipo de mafioso que costumamos ver, um Scarface, mas um homem de negócios, um empresário."
Para chegar a essa atitude do corpo, e apesar da escassa informação disponível, o ator, que nunca anula a sua pacatez de gigante nas personagens, estudou o melhor possível o protagonista: "Para o trabalho de pesquisa sobre esta figura, de que há poucos registos - apenas umas cinco fotografias -, a sorte foi contar com a participação da sua neta Margaret, que foi criada em casa dele. Tivemos várias conversas para perceber quem foi Bumpy Johnson aos olhos dela. E tive a oportunidade de fazer várias perguntas a outras duas pessoas que privaram com ele, Chism e Junebug, que hoje estão com oitenta e noventa anos e ainda vivem no Harlem. Um deles, que era o guarda-costas, ajudou-me inclusive a perceber a sua forma de estar, os seus movimentos... Falei ainda com o professor James Small, imã da mesquita fundada por Malcolm X, que o conheceu. Há também um livro que foi escrito pela mulher de Bumpy, Mayme Johnson, sobre a relação dos dois [Harlem Godfather: The Rap on My Husband, Ellsworth 'Bumpy' Johnson]. De resto, li muito sobre a época e li os poemas dele", conta.
As diferentes facetas deste chefe da máfia são a riqueza da personagem. Desde o pai de família que vai tentar sarar feridas tirando da rua uma filha toxicodependente, ao marido que tem dificuldade em falar à mulher (Ilfenesh Hadera) sobre os fantasmas da prisão, passando pelo jogador de xadrez e o poeta, o mosaico de Johnson é o reflexo da vida que o levou ao mundo do crime, com rápida ascensão.
Nascido em Charleston, na Carolina do Sul, Bumpy Johnson mudou-se para o Harlem ainda na adolescência, depois de o irmão mais velho ter sido acusado de matar um homem branco. Ele próprio, na altura em que andava na casa dos 20 anos, já tinha passado quase metade da sua vida na prisão, a entrar e a sair. Períodos que dedicou à escrita de alguma poesia e à leitura incessante de livros, com um gosto particular pelos de filosofia - isso valeu-lhe a alcunha "The Professor", que ligava bem com a referida habilidade no xadrez.
Foi só na década de 1930, quando se tornou o braço direito de Stephanie St. Clair, a então proeminente gangster negra do bairro nova-iorquino (cuja independência resistiu aos interesses da máfia), senhora de um negócio complexo de lotaria ilegal, que Johnson granjeou nome na cena do Harlem. A associação seguinte ao mafioso Lucky Luciano garantiu-lhe o passaporte para um estável "reinado", que sofreria o tal interregno de uma década na sequência da sua detenção em 1952, quando o comércio ilegal ia de vento em popa e ele era, assim, enviado para a famosa prisão de Alcatraz.
Tudo isto é anterior ao que vemos em Godfather of Harlem. Mas foi este percurso que fez de Johnson o homem recebido de braços abertos pela comunidade negra do bairro, como se vê no primeiro episódio. Ele era um benfeitor para aquela gente. Representava, ao mesmo tempo, "o crime e a sociedade", como sublinha Forest Whitaker.
Com um elenco robusto, onde descobrimos o veterano Paul Sorvino na pele do gangster italiano Frank Costello, a série funciona sobretudo como palco para uma notável performance de conjunto, sob a liderança de Forest Whitaker, claro, que não sucumbe a qualquer gramática de maneirismos, acompanhado por Nigel Thatch, que já tinha ensaiado o perfil de Malcolm X no filme Selma (2014).
A envolvê-los no microcosmos social do Harlem, há uma banda sonora com propósitos, dir-se-ia, didáticos, na relação entre o passado e o presente. O DN perguntou a Whitaker - desta vez, mais na qualidade de produtor - o que esteve na base dessa opção de incluir algumas sonoridades desencontradas da época, e a resposta veio carregada de entusiasmo: "A música foi muito importante para nós! Queríamos trazer para a frente a emoção e o espírito daqueles dias, na ligação entre o ontem e hoje. Ou seja, criar um diálogo, marcá-la com um ritmo, um estilo que levasse as pessoas para aquele ambiente, ao mesmo tempo refletindo a atualidade.
Eu ouvi muita música da época, falámos com Swizz Beatz [produtor, DJ e rapper] para a banda sonora, ele convocou outros músicos [como John Legend], e todas as semanas discutíamos novas canções... Portanto, muito de que se ouve foi escrito para a série, música muito específica, que acaba por ser quase a espinha dorsal para os episódios." Trocado por miúdos, é o chamado gangster style.