Fonte de epidemias no passado, Meca fecha as portas aos peregrinos
Em 1863, a quarta pandemia de cólera começou no delta do rio Ganges, na região de Bengala, na Índia. Dois anos depois, viajou com os muçulmanos indianos que fizeram a peregrinação a Meca, na Arábia Saudita, matando pelo menos 30 mil dos 90 mil peregrinos que participaram no Hajj de 1865. No regresso a casa, estes espalharam a doença pela Europa, América do Norte e África. Não foi a primeira nem a última vez que tal aconteceu. Cientes da história, as autoridades sauditas anunciaram a proibição de entrada no país de peregrinos estrangeiros.
Em agosto do ano passado, cerca de 2,5 milhões de muçulmanos fizeram a peregrinação a Meca durante o Hajj, sendo que 1,8 milhões viajaram do estrangeiro. Esta peregrinação anual ao lugar mais sagrado do Islão, cuja data varia consoante o calendário lunar, é um dos cinco pilares do Islão e é obrigatória para todos os fiéis pelo menos uma vez na vida. Mas, fora dessa data e em qualquer altura do ano, os muçulmanos podem visitar Meca para a peregrinação menor do Umrah. Ou melhor, podiam.
Por causa da epidemia do covid-19, com mais de 82 mil casos confirmados em 48 países do mundo, as autoridades sauditas anunciaram a proibição de entrada no país de peregrinos estrangeiros que iam fazer o Umrah ou visitar a mesquita do profeta, também em Meca. Além dos vistos para a peregrinação, as autoridades sauditas suspenderam ainda a emissão de vistos de turismo para quem vem de países já afetados pelo vírus.
Sem casos ainda registados, a Arábia Saudita diz que a proibição é temporária, mas não se sabe quanto tempo pode durar. O Hajj deste ano será entre 28 de julho e 2 de agosto e caso seja cancelado isso representa um rombo na economia saudita - estima-se que o Hajj e o Umrah representem um aumento de 12 mil milhões de dólares para o PIB anual da Arábia Saudita, sendo a indústria da peregrinação a segunda mais importante do país, depois do petróleo e gás natural.
Dos 1,8 milhões de peregrinos estrangeiros que participaram no Hajj em 2019, 94% chegaram de avião, segundo um estudo oficial. Destes, mais de um milhão vieram de países asiáticos não-árabes (como Paquistão, Indonésia ou Malásia), mas os peregrinos chegam à Arábia Saudita vindos de todo o mundo - 67 mil vieram da Europa e 27 mil do continente americano e da Austrália.
O Hajj representa uma logística monumental para os sauditas, que enfrentam uma multidão de milhões de pessoas a ter de percorrer os passos obrigatórios da peregrinação ao mesmo tempo, em espaços apertados numa cidade onde normalmente só vivem 1,6 milhões de pessoas. E seria um terreno fértil para o novo coronavírus se espalhar, sendo que o contágio ocorre mesmo quando ainda não parecem ter surgido os sintomas, com os peregrinos a arriscar levá-lo no regresso a casa.
A primeira epidemia que há registo durante o Hajj remonta a 632, quando os peregrinos enfrentaram a malária. Além da quarta epidemia de cólera, também a primeira passou por Meca, em 1821, tendo matado cerca de 20 mil peregrinos.
Em 1987, foi a vez da meningite causar problemas. O surto específico que afetou os peregrinos tinha tido origem no Nepal, entre 1983 e 1984, mas depois da peregrinação de 1987 foi registado na África subsariana. Em resposta, a Arábia Saudita passou a exigir a vacina contra a meningite antes de autorizar vistos para os peregrinos, mas já em 2000 outro tipo de meningite voltou a espalhar-se entre os peregrinos, que a levaram no regresso a casa na Europa, EUA, Ásia, África e Médio Oriente.
O coronavírus já tinha feito soar os alarmes das autoridades de saúde sauditas, com a MERS (síndrome respiratória do Médio Oriente), detetado pela primeira vez em 2012 precisamente na Arábia Saudita. O país reforçou as medidas de saúde pública nesse ano e em 2013 (quando pediu aos peregrinos mais velhos e doentes crónicos que evitassem fazer a viagem), tendo registado até ao final de novembro de 2019 um total de 780 mortes, das 858 que ocorreram em todo o mundo.
Questões de saúde não são o único problema em Meca, que já registou vários casos de debandadas que causaram a morte de peregrinos (a 24 de setembro de 2015 morreram cerca de 2400 pessoas num desses movimentos de pânico) e atos de violência. Em 1979, a grande mesquita foi tomada de assalto por um grupo de 500 pessoas liderado por Juhayman al-Otaybi, que pretendia derrubar a dinastia Al-Saud, e fez vários reféns entre os fiéis. O impasse durou duas semanas. Mais de 200 pessoas, entre forças de segurança sauditas e militantes, morreram.