O novo trabalho, Obrigado, é uma forma de Branko, nome artístico de João Barbosa, agradecer a quem segue o seu percurso musical - que começou em 1998 no seu quarto em frente a um computador. Depois da avalanche musical que foram os dez anos de Buraka Som Sistema e que alterou o cenário musical português e não só, e também depois da criação da sua editora independente, Enchufada, o novo disco, o terceiro a solo - antes lançou Atlas (2015) e Nosso (2019) - , apresenta-nos a sua batida típica mas deixa vislumbrar algo novo, talvez a ser mais explorado pelo artista no futuro: a música eletrónica de mãos dadas com música tradicional..Até isso acontecer, é dançar e agradecer sem complexos ao músico e produtor. Algumas músicas já estão disponíveis em plataformas de streaming, o álbum completo chega no próximo 8 de abril..Este novo trabalho, chama-se Obg, abreviatura de Obrigado. E todas os nomes das músicas são abreviaturas. Qual a razão dessas escolhas?.Quase todas são óbvias, acho, mas depende dos locais que usam mais umas siglas que outras. Exemplo: Adrt é Adoro-te, Ooo é Out of Office, Eta é Estimated Time of Arrival como se usa nos GPS. O disco tem uma personalidade mais digital do que os anteriores, talvez porque foi feito numa altura em que não se podia viajar por causa da pandemia. E, ao contrário de outros trabalhos onde viajei muito e gravei nos locais por onde passava, este, sem viagens, foi feito comigo sozinho a olhar para o computador. E isso foi retornar ao tempo em que comecei a fazer música, em 1998. Mas, respondendo, as siglas vêm da necessidade de ter nomes mais universais. Sempre senti que na música instrumental há a ideia de romantizar demasiado... um tema instrumental que coloca as pessoas a dançar não tem de ter uma narrativa poética. E acabei por me refugiar nessas abreviaturas de mensagens, ao abreviar palavras para comunicar mais rápido o que estava a sentir quando estava a criar, sem pensar muito..E porquê Obrigado?.O disco começou com os vários sets que fui gravado e colocando no Youtube, em vários locais pelo país, dos Açores ao Alentejo, de Lisboa ao Porto. Foi uma viagem muito bonita e funcionou como estímulo para criar este disco. Fui sentindo retorno desta narrativa digital, e por isso achei que devia agradecer. E, com todo o meu percurso, cheguei a este ponto de uma forma orgânica, faço a música que quero, produzo para mim e para outros e acho que isso merece um agradecimento..É um disco com menos canções, e já foi dito porque foi feito mais sozinho. Como é que o público vai reagir? Este Obrigado chegará a menos gente por isso?.Sinto que o momento me permitiu fazer o que estou a fazer porque as pessoas começaram a consumir música de forma diferente. Com a pandemia tiveram mais tempo para descobrir e decidir o que gostam e o que não gostam. Quem me segue gosta do meu trabalho independentemente de ser um tema mais instrumental ou não. Se calhar este trabalho não vai encaixar numa RFM ou na Rádio Comercial, mas talvez vá para uma série de playlists de pessoas que me seguem, e se calhar em playlists de pessoas que nem sequer sabem quem sou. Foi muito interessante produzir um disco sem estar preocupado em ter canções para a rádio..Os Buraka Som Sistema criaram um som próprio, bebendo na mescla de culturas que existem na Grande Lisboa. Esse som de Lisboa, de Portugal, continua a ser, em parte, a matriz do seu trabalho a solo ou o que está a criar podia ter sido criado noutro local do planeta?.Sinceramente, acho não podia ter sido feito em mais nenhum local do mundo. O que pode ser sentido como global tem a ver com aquilo que se fez com os Buraka que universalizou conceitos. Mas continuo a fazer música eletrónica mais sincopada, com o beat que Buraka tornou comum e que quando ouvimos já nem pensamos nisso. Quase todas as minhas músicas têm uma base de afro house ou de kizomba que depois é desenvolvida numa direção de notas de harmonia e texturas encaixadas para esses padrões rítmicos em que, de alguma forma, me situo. Talvez a universalidade do ritmo seja esse passaporte..Pode dizer-se que há uma música eletrónica portuguesa? Ou melhor, de Lisboa?.Em Lisboa há um epicentro de uma criação musical que é fruto da presença de várias comunidades de língua portuguesa. E também de várias entidades criativas a nível de produção, de canto, etc., que em conjunto criam um cariz português, e mais especificamente de Lisboa, que muita gente no mundo ouve e identifica como tal. Ao ouvirmos rádios internacionais, sempre que falam de um som deste tipo falam do som de Lisboa - que é bastante abrangente. E mesmo em termos de promotoras e de presenças em festival já há muito a acontecer. É o resultado do caminho que tem sido desbravado ao longo dos tempos e de cada vez mais se passa nesta ideia de que existe uma sonoridade de Portugal e de Lisboa. E a meu ver é a nível da música eletrónica, e não tanto ao nível do hip hop ou dos outros géneros. No hip hop ouve-se muito uma narrativa nacional, e isso é muito interessante porque conseguiram abandonar a narrativa americana. Ainda que nem todos os artistas consigam sair da sonoridade do hip hop imposta pelos EUA..Citaçãocitacao"Costumo dizer que se uma pessoa como o André Ventura fosse primeiro-ministro iríamos [Buraka Som Sistema] reunir e organizar o maior concerto que Portugal já viu para tentar atirar as mentes para outro sítio.".Voltando aos Buraka Som Sistema. Nunca pensaram num regresso?.Foram 10 anos muito intensos. Vivemos aquele momento uns para os outros profissionalmente e muito gratos por tudo: viajar, conhecer, tocar... Da mesma maneira que se estava em sintonia com isso, também ficámos em sintonia em dizer que a história estava bem contada e que não tínhamos mais nada para dizer. Nesse sentido nunca ninguém se lembrou de ligar uns aos outros para voltarmos. Se houver necessidade, estamos de portas abertas para falarmos e juntarmo-nos, mas sempre com o intuito de dizer alguma coisa. Se, por alguma razão, a diversidade cultural em Portugal estivesse em risco, aí sim faria sentido. Costumo dizer que se uma pessoa como o André Ventura fosse primeiro-ministro iríamos organizar o maior concerto que Portugal já viu para tentar atirar as mentes para outro sítio. Não estou a dizer que precisamos que isso aconteça para voltarmos, mas é um exemplo de um motivo. Não somos uma banda que tenha de reunir para fazer dinheiro, todos nós continuamos a produzir, a tocar e a fazer tours..Sei que tenta sempre conhecer novas tendências ou procurar músicas de nicho. Quais são os caminhos para encontrar isso?.A internet trouxe uma grande democratização. A música eletrónica pode ser feita por alguém sem qualquer influência da indústria musical, em frente ao computador. É esse alguém que faz as suas escolhas, o tamanho da música, os sons a usar, o que quer dizer. E essa forma de se fazer, sozinho, é capaz de ser das impressões digitais mais claras das culturas e meios urbanos da cada cidade. Já os mecanismos de descoberta são os normais: Soundcloud, Bandcamp, Spotify; plataformas que te levam de uma coisa à outra..E a questão do algoritmo do Spotify, por exemplo, não pode ser limitador para quem quer ouvir e descobrir música nova?.Vou ser muito sincero, acho que é preferível existir um algoritmo, do Spotify, por exemplo, a fazer o que faz, do que a rádio que tínhamos há 10 anos atrás. Isso para mim é muito óbvio. Essa rádio era um misto de influência de editoras, de relações, de almoços e jantares, e nem me quero prenunciar muito sobre isso. Hoje em dia, esse algoritmo ou essa democratização obrigou as pessoas a saírem dessa zona de conforto e a serem obrigados a tocarem e a confirmar fenómenos mundiais mesmo sendo de uma editora independente ou provenientes de locais menos óbvios. Vai ter sempre coisas positivas e negativas, mas acho que conseguiu baralhar o sistema..Citaçãocitacao"Acho que é preferível existir um algoritmo, do Spotify por exemplo, a fazer o que faz, do que a rádio que tínhamos há 10 anos atrás. Isso para mim é muito óbvio.".Para além da música, criou um programa de TV, na RTP, o Club Atlas, feito em conjunto com o realizador João Moreira, no qual esteve em oito cidades a conhecer os sons eletrónicos locais. É possível haver uma segunda temporada?.Sim, sem dúvida. Existe uma forma generalista de falar de música eletrónica global e nesse programa tentamos encontrar os momentos em que a música tradicional se cruza com a música eletrónica nessas cidades. E há histórias muito interessantes que ainda não foram contadas..E isso faz voltar ao novo disco que abre com uma samplagem de uma música tradicional portuguesa. Além disso há uma história pessoal pelo meio....Sim, foi uma surpresa. Peguei numa gravação de 1982 de um disco que fez uma recolha de músicas tradicionais da Beira Baixa e do Minho. E samplei uma música chamada Embalo, da Beira Baixa, e de alguma forma senti uma conexão com isso. Mais tarde, quando a enviei à minha mãe, percebi: era a música que a minha bisavó me cantava para eu adormecer. Foi muito interessante descobrir isso. Esse cruzamento entre a música tradicional portuguesa e a eletrónica está a ganhar um espaço muito interessante, sobretudo com artistas como a Rita Vian e o Pedro Mafama. É das cenas musicais pela qual estou mais curioso. É interessante que anteriormente usava-se o passado para contar alguma coisa do futuro, e eu faço isso no Sra (Senhora), por exemplo. Mas hoje temos artistas que criam música que junta as duas coisas de uma forma muito natural. A Rita Vian é um exemplo disso. Se calhar no final de um jantar canta fado com a família depois vai para o Lux ouvir Buraka Som Sistema. Tudo isso a acontecer numa só noite criou uma artista que é mesmo esse cruzamento. E natural, honesto. Não foi necessário ninguém sentar-se numa sala de reuniões a decidir criar esse som, ela já é assim..Que conselhos dá a quem o segue e vê como exemplo para ser produtor, DJ, músico ?.Há muita música que soa muito igual, há criadores que são técnicos e replicam coisas que já existem com umas pequenas diferenças, mas eu nunca foi assim. O meu conselho é que as pessoas tenham tempo para cruzarem experiências até chegarem a um ponto interessante e diferente que faça as pessoas reagir quando as ouvem. Não fazia sentido eu ter crescido na Amadora nos anos 1990 e achar que ia ter uma banda de grunge, eu não sou de Seattle; ou mais tarde pensar que ia ter uma banda de rap espetacular como os Beastie Boys... mas tudo isso me inspirou a sentar à frente do computador e criar algo diferente. Acho que se deve criar procurando uma identidade, que se distinga de outros, e não se satisfazer logo à primeira só porque soa bem ou soa parecido a algo que soa bem. Tem de causar ou estranheza ou surpresa..E agora vem aí digressão?.Sim, felizmente estamos a marcar muitas datas nacionais e internacionais. Depois do concerto no Porto, toco no Sonar Lisboa agora no início de abril com um artista do Gana. E isso será um pouco como o pontapé de saída do reinício do trabalho que foi interrompido com a pandemia..Obg (Obrigado) Editado pela Enchufada Disponível a 8 de abril..filipe.gil@dn.pt