Rex Alarcon é um nome que sintetiza bem o que foi a História das Filipinas: se o apelido remete imediatamente para a colonização espanhola, que durou mais de três séculos, já o primeiro nome faz lembrar o legado dos Estados Unidos, que durante meio século governaram o arquipélago e que, mesmo depois da independência, logo a seguir à Segunda Guerra Mundial, nunca deixaram de exercer influência. Rex Alarcon, que entrevistei no final da sua visita a Lisboa para a Jornada Mundial da Juventude, é bispo católico, a religião da grande maioria dos 110 milhões de filipinos e, juntamente com os nomes de família, o vestígio mais óbvio de uma ligação a Espanha, que começou em 1521, com a chegada da expedição liderada por Fernão de Magalhães (navegador português, mas ao serviço da Coroa espanhola), e foi reforçada décadas depois por uma espécie de segunda descoberta, com as ilhas a serem então batizadas em homenagem ao futuro Filipe II, então herdeiro de Carlos V. Diz o bispo que o catolicismo, com o tempo, se tornou uma parte da identidade do povo filipino, ainda que haja uma minoria muçulmana..A língua espanhola, porém, desapareceu. Além de inúmeros idiomas locais, os filipinos falam hoje tagalog, língua oficial com ambição de ser nacional, apesar das sete mil ilhas, e inglês, também oficial e língua de comunicação internacional, tão importante para um povo que tem grande tradição de emigração..Há muitas explicações para o desaparecimento total do espanhol das Filipinas (tirando alguns crioulos),. mas sem dúvida a Guerra Hispano-Americana de 1898, que viu os Estados Unidos tomarem várias colónias espanholas (incluindo Porto Rico até hoje), foi decisiva. Mudou o colonizador, mudou a língua do poder..Poderia ter sido diferente a História das Filipinas, com uma independência negociada com Espanha e sobrevivência do espanhol, mesmo que fosse língua sobretudo falada pelas elites? É impossível de responder, mas a execução do dr. José Rizal (era médico de formação) foi trágica em todos os sentidos, tanto para a emancipação das Filipinas, como para a língua espanhola no arquipélago. A Espanha, por culpa de um governador extremado, fuzilou um paladino da língua e cultura espanholas, que usava a palavra como arma.."Falo sempre do caso das Filipinas como um exemplo do malfazer político dos imperialismos, porque havia uma presença espanhola cultural muito forte e um escritor importante em espanhol, José Rizal, que foi um grande protagonista de todos os processos de identidade filipina. E ele lutou para que o país, no século XIX, deixasse de ser considerado uma colónia e fosse considerado uma província de Espanha, com os mesmos direitos de qualquer província e sem a servidão de colónia. Bom, José Rizal foi detido, foi julgado e foi fuzilado por ser antiespanhol, o que foi uma grande desgraça, porque era um grande escritor filipino em língua espanhola. E todo esse malfazer fez com que depois, com a chegada dos Estados Unidos, e depois, com a Segunda Guerra Mundial e o confronto forte ali entre japoneses e norte-americanos, as raízes espanholas, a cultura espanhola, desaparecessem, e agora só há uma presença muito dissimulada", disse-me, há uns meses, Luís Garcia Montero, o poeta que é o presidente do Instituto Cervantes..Rizal era uma figura tão célebre que a notícia da sua execução foi dada no Diário de Notícias na edição do último dia de 1896, como contam Paulo de Sousa Pinto e Isabel Araújo Branco, na introdução ao seu romance Noli Me Tangere. Agora pela primeira vez com edição portuguesa (tradução de Rita Custódio e Àlex Tarradellas), o livro chega-nos em resultado do entusiasmo de Celia Anna M. Feria, embaixadora das Filipinas em Lisboa desde 2017, uma diplomata incansável na promoção do seu país e das relações luso-filipinas (só um exemplo: os historiadores que trouxe a Lisboa para falarem dos 500 Anos de Magalhães)..Noli Me Tangere, editado pela Penguin, merece ser lido como um romance (título é de uma passagem do Evangelho Segundo São João, na tradução em latim), e confirma os créditos literários de Rizal. Mas deve ser também visto como uma recordação de que a história está cheia de erros, trágicos a nível individual, como neste caso, mas muitas vezes trágicos também pelas consequências amplas que têm associadas..O bispo filipino assume, na entrevista publicada na segunda-feira, que o legado do passado colonial espanhol é um legado misto: "Nós estamos gratos aos que vieram, porque trouxeram a Educação, a música, a arquitetura, o desenvolvimento. Portanto, estamos agradecidos aos missionários, aos que vieram, os conquistadores, como lhes chamamos, embora na história recente as coisas tenham sido vistas de forma muito parcial. A geração de onde eu venho é mais ou menos o resultado da fase do esclarecimento, mas sim, sentimos gratidão. Foi, sem dúvida, um encontro de culturas que teve as suas coisas positivas e negativas, mas em geral teve mais coisas positivas". Rex Alarcon disse isto em inglês. Poderia talvez tê-lo dito em espanhol se Rizal tivesse sido escutado por quem de direito e poupado a um destino injusto. Noli Me Tangere é hoje de leitura obrigatória nos liceus das Filipinas, mas os compatriotas do dr. Rizal que o leem têm de recorrer a traduções..Diretor adjunto do Diário de Notícias