"Não sabe a quantidade de pessoas que paravam o carro no semáforo ou que estavam no autocarro e voltam aqui a perguntar por uma peça que viram na montra." Parada na entrada junto ao balcão, rodeada de malas e carteiras, esta é uma das formas de Fernanda Igrejas mostrar o orgulho numa das mais antigas lojas de Lisboa e com lugar marcado na história da cidade. E usa-a para complementar com uma outra máxima: "As montras são os primeiros vendedores.".Talvez a organização das vitrines seja um dos trunfos para fazer parar quem passa no passeio da lisboeta Rua do Ouro, mas a discreta E. E. de Sousa e Silva tem outras formas de cativar os clientes: o seu trabalho na área da sinalética e carimbos. E, claro, as malas que são o primeiro chamariz visível aos tais eventuais clientes..Liderada por Fernanda Igrejas desde 1990 esta loja da Baixa da capital tem um outro cartão-de-visita, porventura menos conhecido mas bem visível na fachada de madeira que resiste desde 1911: faz parte da história de Lisboa e de Portugal..Fundada em 1819, tem na sua génese a criação e venda de carimbos uma inovação na altura. "Começou por ser a primeira casa de carimbos em Portugal", conta Fernanda Igrejas. "Começou com os carimbos, a sinalética e os brasões de família. Nos primórdios tinha também os bordados de madeira, a filatelia, um avaliador da casa real. Depois foi-se adaptando aos tempos, evoluindo.".Essa adaptação é bem visível na montra ou no interior da loja: as malas são agora um produto importante na oferta da empresa e surgem em primeiro plano quando se entra no espaço situado perto da estação de metro da Baixa-Chiado (saída para a Baixa)..Esse é um produto importante sim, mas é no negócio com mais de 200 anos que a empresa vai buscar a força e vitalidade.."Há muita procura pela sinalética, carimbos, sinetes [espécie de selo muito usado entre os séculos XVI e XVIII]. Há também uma onda de procura de sinetes para os casamentos, fomos buscar essa onda a Espanha, antigamente eram os anéis de família, brasonados, agora não. Fazemos sinetes com iniciais, com os floreados todos que os noivos querem para pôr nos envelopes de casamento, etc.", diz Fernanda Igrejas que há 30 anos lidera a loja depois de ter vendido um negócio ligado à moda..Conta que a decisão de investir na loja surgiu depois de uma conversa: "Tinha uma outra empresa que eu e o meu marido vendemos. Depois falaram-me nesta loja e pensei que seria um bom investimento. Estavam a começar as obras do metro [a estação da Baixa-Chiado ficou concluída em 1998] e a loja ficava na Rua do Ouro. Acho que as lojas têm de primar, acima de tudo, pela boa localização. E disse que isto é uma loja que poderá ter futuro com marcas boas, tentando manter um target de qualidade, acima da média, média alta", explica ao DN..Com uma aposta em produtos de qualidade e no turismo, à exceção dos carimbos ou trabalhos para autarquias, a E. E. de Sousa e Silva focou-se muito nos turistas que nos primeiros dois meses de 2020 ainda enchiam as ruas de Lisboa. Clientes que desapareceram, aliás como os portugueses, o que levou ao aumento da aposta no comércio online. "Trabalho muito com a net, e temos muitos clientes que já nos conhecem, a casa é muito conhecida, trabalhamos para o Estado, para as câmaras municipais, nomeadamente com os carimbos", salienta Fernanda Igrejas que lembra o gosto que os norte-americanos mostravam pelos produtos que vende. "Adoravam [os naturais dos EUA] a nossa qualidade. Os estrangeiros quando vêm cá, veem estas coisas com qualidade e gostam", frisa..A loja do número 157 da Rua do Ouro faz parte da rede de Lojas com História de Lisboa: foi fundada em 1819, foi a primeira casa especializada em carimbos e gravações, tem uma fachada em madeira desde 1911. E pouco mais se sabe sobre o estabelecimento que terá sido fundado pelo pai de Eduardo Estalisnau de Sousa, como surge uma referência num documento de 1945.."Não há nada na câmara sobre a história da loja, já procurei nos arquivos, mas não há nada que fale sobre isso. Não há documentos sobre a história da casa", reconhece Fernanda Igrejas..Então como chegou até à atualidade a história da E. E. de Sousa e Silva? "Foi pela tradição oral", explica, mostrando um livro que reúne excertos do que foi publicado em 1945 numa edição das associações Industrial Portuguesa e Comercial de Lisboa com o título "Praça de Lisboa - Livro de Ouro do Comércio e Indústria da Capital". "A fidedigna tradição oral diz ter sido esta casa fundada pelo pai do já falecido Eduardo Estalisnau de Sousa, seu segundo possuidor e gerente", pode ali ler-se. Conta-se igualmente que em 1989 a loja deixou de pertencer à família do fundador tendo o novo proprietário mantido o "negócio de carimbos, brasões, selos brancos e gravações" e adaptado uma parte da loja ao "comércio de malas, marroquinaria e artigos de viagem". Este investimento durou um ano e em 1990 a família Igrejas comprou a loja tendo mantido as mesmas áreas de negócio. Uma aposta na manutenção da "sua matriz, da qualidade dos produtos e sobretudo manter a secção mãe: os carimbos", como sublinha a proprietária..Nos seus dois séculos de existência esta loja já enfrentou inúmeros desafios mas talvez nenhum como o atual provocado pela covid-19. "Chamaram crise à troika [intervenção financeira em Portugal por parte do Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia entre 2011 e 2014], mas a crise está agora implantada", diz Fernanda Igrejas. E dá como exemplo das dificuldades que o comércio está a enfrentar o facto de no período de meia hora em que o DN estava na loja não ter entrado nenhum cliente. "A loja está a precisar de obras, mas neste momento devido à situação atual não vamos fazer nada", lamenta..É este o momento também para criticar os políticos e as suas opções. "Um centro histórico sem um bom comércio não cativa. Precisa de ter boas lojas, mas isto não é a opinião da maior parte dos políticos. Precisávamos de mais dinamismo, mais coisas, mais proteção. E a câmara devia fazer um roteiro de lojas com história", acrescenta..A desilusão quanto à situação da cidade não se fica por aqui e é ao falar sobre quem trabalha consigo na loja que Fernanda destaca outro dos problemas: a habitação. "A loja tem quatro funcionárias - eu, a minha filha Paula, a Alexandra Bonito e Paula Marques - tinha uma outra funcionária que foi embora porque foi despejada de casa. Vivia aqui na Baixa e teve de deixar a casa. Esse é outro dos cancros da cidade que a câmara e os governos não veem. Você não tem ninguém na Baixa, em lado nenhum", lamenta a também membro da Associação de Dinamização da Baixa Pombalina..Perante todo este cenário resta-lhe resistir e esperar que tudo volte a ser como contava no início do texto: "Não sabe a quantidade de pessoas que paravam o carro no semáforo ou que estavam no autocarro e voltam aqui a perguntar por uma peça que viram na montra."