Fogo no Pinhal de Leiria: um ano depois, casas e vidas recuperadas à custa do voluntariado

As famílias afetadas pelo fogo conseguiram recuperar casas e vidas. Agradecem aos voluntários mas apontam o dedo ao Estado e entidades locais
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"Sabe o que é mais ridículo? Para cortar cinco pinheiros que corriam o risco de cair e fazer estragos, tive que pagar 95 euros ao ICNF". Joaquim José percorre o parque de campismo da Vieira de Leiria, que gere há dois anos, com um misto de orgulho e revolta. Afinal, um ano depois do fogo que destruiu as diversas instalações do espaço, está praticamente tudo recuperado. Com o tempo, foi digerindo a resposta da companhia de seguros, que não cobriu nenhum dos danos porque "o sinistro derivou de causas naturais", contabilizou as mais de 70 toneladas de tout-venant espalhadas nas ruas do parque, e prefere focar-se no orgulho dos campistas que, a expensas próprias, recuperaram praticamente tudo.

Ali contam-se 45 instalações, um misto de bungalows e casas de segunda habitação, sendo que boa parte delas foi destruída pelo incêndio de 15 de outubro de 2017. Apesar da pedra espalhada, Joaquim sublinha a força da cinza: volta sempre a aparecer, entranhada por toda a parte. Apesar da tragédia, este foi um ano bom para o parque da Vieira. "Reabrimos o restaurante, criámos um espaço de bar muito agradável, e as pessoas vieram e participaram. Além disso não nos podemos esquecer que, por pior que seja, estas não são casas de primeira habitação", acrescenta o responsável do parque. E não. Essas estão do lado de lá do pinhal, no lugar de Talhões, na travessia entre a Praia e a Vieira de Leiria.

As forças que Carlos encontrou

A Rua Dr. Franklin Vieira de Dias já se chamou "rua G". Ao princípio, uma placa indica que não tem saída. Era assim que Carlos Feijão se sentia há um ano, quando o DN o encontrou, num desânimo que parecia não ter retorno. A casa onde mora com a mulher, Manuela, e uma filha adotiva, é a última daquela rua que homenageia o médico da terra, falecido em 1982. A 15 de outubro, Carlos Feijão descrevia-se num título de jornal: "não sei se ainda tenho forças". Mas acabou por arranjá-las. Quando esta semana voltámos à casa - agora totalmente recuperada, graças ao seguro "que foi bastante célere" - o casal parecia rejuvenescido.

O eletricista/ canalizador pôs mãos à obra poucos dias depois da tragédia, com a ajuda de um grupo de voluntários que é apontado por todos como o verdadeiro ponto de ajuda. Nos dias seguintes ao fogo a família recebeu a visita de uma técnica da Câmara e outra da Segurança Social, também. Feito o levantamento das necessidades, "ainda hoje estamos à espera que aqui voltem", conta Carlos Feijão, que nos primeiros tempos viveu num anexo, nas traseiras da casa. "Aos poucos fomos reparando, com o dinheiro do seguro. Da Segurança Social veio um apoio de mil e tal euros. A minha preocupação maior já na altura era a recuperação das ferramentas para voltar à minha atividade profissional. Ardeu tudo, Fiquei sem um único parafuso. Mas os voluntários ajudaram-se muito, com materiais e com mão-de-obra, sobretudo". Aconselhado na Câmara da Marinha Grande a preencher, on-line, o formulário que lhe permitiria algum apoio enquanto trabalhador por conta própria. Foi quando percebeu que a burocracia se assemelhava a um travão, até que desistiu. "Isto está feito para as grandes empresas. Pediam-me escrita organizada, mas eu não atinjo o valor pretendido para isso. Pago os meus impostos, estou no regime de IVA, mas não chega para isso", conta ao DN, enquanto mostra a oficina recuperada.

Nos dias que se seguiram ao fogo, depois daquela imagem que foi capa do DN, a 17 de outubro, um corrupio de visitas andou por ali. "Até a Federação Portuguesa de Futebol aqui esteve, na véspera de um jogo, a dizer que iam angariar verbas e nos iam ajudar. Nunca veio nada", conta este proprietário. No Natal, já a família estava instalada de novo na casa. Carlos Feijão lamenta no entanto que nem a Câmara nem a Proteção Civil - que tanto alertara, nos meses anteriores, para a tragédia iminente - ali tenham voltado. "A senhora presidente da Câmara só conheceu esta rua no dia em que veio guardar as costas ao Presidente da República", afirma, lamentando que o entulho proveniente das obras continue à porta de casa, num monte, à espera de ser retirado. "A junta de Freguesia veio cá, levou alguma coisa, e depois nunca mais cá voltaram". Ou melhor, alguém voltou, "à socapa, pôr uma torneira no lugar da boca de incêndio que na altura eu vos mostrei, e estava tamponada".

Entretanto, Carlos Feijão conheceu finalmente o proprietário do terreno anexo à sua moradia, que até então ninguém conseguira contactar. Meses depois apareceu, mandou limpar o terreno, disse aos vizinhos que não soubera de nada, de incêndio nenhum. "O que importa é que deixou uma pessoa encarregue de limpar o terreno. Vamos ver daqui para a frente". Desse dia aziago, Carlos recorda ainda o episódio com o 112, que conta para memória futura: "quando me apercebi que o fogo era tão sério liguei para eles, para saber se saia de casa ou se ficava. Passaram a chamada de mão em mão para umas quatro pessoas. Diziam-me para não sair daqui, para não desligar, que iam passar a não sei quem. E isso não pode ser. O Estado tem que cumprir o seu papel na defesa das pessoas".

O apoio dos voluntários

Ao lado de Carlos Feijão fica a oficina de Filipe Pereira, 43 anos, que voltou a laborar em pleno em meados de julho. Também ele sublinha o "apoio incansável dos voluntários, que me ajudaram em tudo, que conseguiram apoios de empresas para que eu pudesse ter aqui outra vez o material. Vinham aqui equipas todos os fins-de-semana. E disso nunca me vou esquecer". Além disso, fica também nesse registo de gratidão o gesto de um concorrente: "no dia a seguir ao incêndio o senhor Pacheco, da Auto-Centro, ofereceu-me a oficina dele para eu trabalhar. Só assim é que eu consegui manter os meus clientes", conta ao DN, na oficina que fica nas traseiras da casa dos sogros, também ela parcialmente destruída pelo fogo, e agora recuperada. Também ele desistiu dos formulários disponibilizados pela Comissão de Coordenação da Região Centro, para eventuais apoios. "Às tantas a burocracia é tanta que uma pessoa desmoraliza".

Não muito longe dali fica a sede (provisória) da associação Amigos por Perto, que resultou de um grupo de voluntários constituído na madrugada de 17 de junho de 2017, quando saíram para a rua as primeiras notícias do fogo de Pedrógão Grande. Por ironia, a 15 de outubro o grupo encontrava-se por lá, a montar uma cozinha numa das habitações afetadas, quando muitos deles tiveram que regressar à Vieira para salvar os próprios bens. Foi o caso de Vera Braga, que lidera esse exército de boa-vontade. Em fevereiro, quando o DN foi conhecer o armazém onde os voluntários montaram o seu quartel-general, o grupo ponderava uma de duas opções: extinguir-se ou avançar para a constituição de uma associação. Venceu a segunda opção, na época impulsionada pela Câmara Municipal da Marinha Grande, que prometia apoiar de várias formas, nomeadamente do ponto de vista financeiro, para suportar a renda mensal de 700 euros à empresa proprietária do pavilhão. Mas os apoios ainda nunca chegaram.

Esta semana, entre várias questões que o DN enviou à presidente, Cidália Ferreira, a autarquia enalteceu "o papel extraordinário do Grupo de Voluntários, hoje Associação Amigos por Perto, a quem demos também todo o nosso apoio, sobretudo logístico, na recolha e distribuição de bens pelas famílias atingidas". As versões não coincidem. Vera Braga destaca o apoio "na cedência de transportes, sobretudo para o entulho", mas diz que esperava mais, por parte da Câmara. "Ao princípio puseram-nos umas casas de banho móveis, junto ao pavilhão, mas em abril vieram buscá-las", lamenta. Apesar da falta de apoio, a associação continua a apoiar "44 famílias, embora dessas apenas 38 nos tivessem feito participação. O que aconteceu foi que o fogo destapou muita situação de pobreza escondida, e não podemos deixar essas pessoas desamparadas". A responsável da associação contou ao DN que "foram os voluntários quem fez todo o levantamento das necessidades sociais, posteriormente entregue à Câmara". De resto, acrescenta que é a própria autarquia "quem nos envia casos para ajudarmos, tal como acontece atualmente com a CPCJ e até com a Santa Casa da Misericórdia". Entretanto, a Amigos por Perto identificou uma das casas devolutas, propriedade do ICNF [Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas], que gostaria de adaptar para sede. Apesar de ainda não ter resposta, é dessa esperança que se faz o quotidiano destes voluntários, cuja experiência já correu o país. No verão passado, Vera recebeu uma chamada da vice-presidente da Câmara de Monchique, a pedir auxílio. E lá foi, com outra voluntária, ajudar num processo que conhece bem, desde o fogo de Pedrógão Grande. "Nós estamos prontos para ajudar onde for preciso. Só precisamos de algum apoio. E até o Presidente da República já sabe disso".

A presidente da Câmara garante ter feito tudo o que estava ao alcance da autarquia. "Em primeiro lugar foi feito um levantamento exaustivo de todas as situações identificadas pelos nossos serviços técnicos, quer da área do urbanismo, quer da área de intervenção social. Acompanhámos todos os casos e demos toda a assistência técnica e social necessária", disse.

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