Fillon? Macron? Mélenchon? Le Pen? Qualquer deles, e só eles

Nas eleições francesas tem vingado a tendência para o inesperado. Uma certeza apenas: as primárias foram um erro que os partidos tradicionais vão pagar caro.
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No país de Descartes, o do Discurso do Método, que é sobre o método da dúvida, o melhor é não dar nada por certo. Em França até o Estado Islâmico se baralha. Este, que tem por truque reivindicar-se como seu tudo o que não puder ser demonstrado que não é, pela primeira vez meteu os pés pelas mãos. Depois do assassínio de um polícia nos Campos Elísios, na noite de quinta, um apressado comunicado do Daesh disse que o bandido era um tal Abu Yussuf Al-Belgiki. Ora, o assassino não é da Bélgica coisa nenhuma. Resultado: não só o canalha abatido pode ter problemas quando reivindicar as virgens prometidas como andam agora as polícias à procura de um terrorista islâmico belga (espécie vasta) que ainda não fez o que tinha combinado.

No pior episódio destas eleições francesas, a mesma tendência para o inesperado que elas têm tido. Balanço rápido: chega-se ao último dia e é extenso o rol dos tenores - todos há um ano potenciais presidentes - já dados como irremediáveis derrotados. Hollande, a quem se emprestava, pelo menos, a tradição de um presidente em exercício concorrer; Sarkozy, famoso pelos regressos vitoriosos; Juppé, que chegou a aparecer como favorito nas sondagens antes das primárias da direita gaulista; Valls, primeiro-ministro socialista demissionário porque o patamar superior estava ali à mão... Todos, com a precaução devida a esta profissão com tantos casos de ressurreição, são hoje considerados mortos políticos.

Até Benoît Hamon, o inesperado vencedor das primárias socialistas, é uma das poucas coisas seguras destas eleições: amanhã será derrotado. Tão derrotado que é mais do que ele: pode provocar uma derrocada financeira no seu partido. As sondagens dão-lhe sete por cento, tão próximos dos cinco por cento fatídicos: abaixo deles, o Estado não paga os oito milhões de euros a que cada candidato tem direito. "Uma Berezina para o PS!", diz-se na Rua Solférino, sede do PS. Solférino foi uma batalha ganha por Napoleão, como tantas que deram nomes de ruas de Paris (Austerlitz, Iéna, Rivoli...) Mas nenhuma se chama Berezina, terrível derrota do imperador quando recuava da Rússia. O PS francês arrisca-se a ir para as eleições legislativas, já em junho, com os cofres vazios por ter de pagar do seu bolso as despesas do candidato Hamon.

Este exemplo de erro de escolha é também uma lição que se tira já destas presidenciais: a desastrosa ideia de primárias nos partidos. Na edição do jornal Le Monde de terça-feira, um texto de página inteira: "E se acabássemos com as primárias..." O presidente Hollande explicava porque se tinha retirado das presidenciais: não estava disposto a sujeitar-se às primárias do seu partido. Dizia ele: "Uma primária é uma ideia oposta à função presidencial." Modernice para alargar a base social dos partidos, abrindo a votação a pessoas externas, as primárias penalizariam quem tinha sido obrigado a tomar decisões impopulares...

Porém, as primárias iriam ter outras consequências, e mais importantes. O regime da V República, saído da vontade do general De Gaulle, em 1958, forjou dois pilares que repartiram o poder entre os partidos gaulistas (ao longo dos tempos mudando de nome, até ao atual LR, Les Républicains) e o PS francês. Desde há 60 anos, todos os presidentes e todos os governos foram ou gaulistas ou socialistas. Há 20 anos, o crescimento da extrema-direita da Frente Nacional, tida como perigo para a República, levou a que os candidatos dos partidos-pilares fossem escolhidos não só para ganhar na primeira volta como também para defrontar, na segunda volta, o possível adversário da FN, recolhendo os votos moderados. Foi assim que, em 2002, o gaulista Jacques Chirac beneficiou do voto dos socialistas quando defrontou Jean-Marie Le Pen.

Nas presidenciais de 2017, as sondagens já davam Marine Le Pen como certa na segunda volta, no momento das primárias do LR e do PS. Esperava-se, então, que os candidatos gaulista e socialista fossem capazes, qualquer deles, de juntar os respetivos votos contra a extrema-direita. Se tivessem sido os partidos a escolher, teriam tido talvez essa prudência. Mas houve primárias, e os escolhidos foram François Fillon, o mais à direita dos LR, e Benoît Hamon, o mais à esquerda do PS. As presidenciais 2017 anunciavam-se (e cumpriram) tempestuosas.

À esquerda, o esquerdista do PS Hamon foi engolido por Jean--Luc Mélenchon, um autêntico radical: porquê a cópia quando havia o original? À direita, Fillon foi devorado por escândalos mal enfarpelados, o menor não sendo ter recebido fatos de milhares de euros de um negociante de reputação sulfurosa. Entretanto, surgiu ao centro (a política, como a natureza, tem horror ao vazio) um fenómeno de ambição e estratégia, Emmanuel Macron, ainda há pouco ministro de Hollande. Não foi às primárias, candidatou-se por seu pé e as sondagens parecem ter gostado da ousadia: está à cabeça de um grupo de quatro (com Le Pen, Fillon e Mélenchon) cuja estreita margem de erro não permite prognósticos.

Ou talvez só estes: amanhã a direita francesa vai indo mais para a direita; o PS francês vai estilhaçar-se, parte reconstruindo-se para o centro, e parte para uma esquerda vamos lá ver. Como até a hipótese de a França sair da UE está na mesa, devíamos estar preocupados. E como, na quinta, ainda antes do atentado nos Campos Elísios, uma tábua caiu de um andaime na estação metropolitana de Châtelet, motivando um estouro de pânico ("vamos todos morrer!"), devíamos estar todos preocupadíssimos.

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