Respirar fundo e dizer: não estava à espera, mesmo! As palavras são de Filipe Melo, músico, autor de BD e cineasta provavelmente não tão improvável, referindo-se à sua pré-nomeação ao Óscar de melhor curta-metragem de ficção com O Lobo Solitário, um dos quinze filmes na shortlist, algo inédito em Portugal e com valor acrescentado num ano em que mais duas curtas de animação portuguesas também figuram nas shortlists: Ice Merchants, de João Gonzalez (candidato com muitas probabilidades de ficar nomeado) e O Homem do Lixo, de Laura Gonçalves..De facto, há surpresa com o facto do filme de Melo estar nesta situação. É já um triunfo, um feito do cinema português, sobretudo se pensarmos que a animação Portugal já tinha andado nestas coisas das listas mais próximas dos cinco nomeados - também no documentário Miguel Gonçalves Mendes com José e Pilar, em 2010, picou o ponto. Surpresa porque o filme esteve apenas em destaque em Portugal: venceu o prémio do público no Curtas 2021 e a melhor curta nos Sophia, os prémios da Academia nacional, embora lá fora não se tenha destacado por aí além.."Vou dizer a verdade absoluta: estava a dormir quando foi anunciada a shortlist. Nunca esperei. Isto é uma loucura, uma loucura total, sobretudo num ano em que somos três!! É preciso saber que no meio cinematográfico cá em Portugal há um certo desdém dos Óscares, tipo é palhaçada e nós gostamos mesmo é de filmes de festivais. Ora, acontece que gosto muito de cinema mas também dos Óscares! Tenho uma relação muito particular com essa cerimónia: desde o ano de O Último Imperador (1987) que todas as madrugadas vejo a cerimónia com a minha mãe. E claro que o sonho fica meio entranhado... Apesar de gostar muito de música, o meu coração sempre esteve nos filmes. Não é bem sonhar com ganhar um Óscar, é alimentar a utopia...".Agora, Filipe espera para perceber se é mesmo nomeado a 24 de janeiro, mas confessa que não vai perder o sono à espera dessa data. Estar nesta posição é já uma certa forma de milagre. Lembra que tal só foi possível porque a dada altura surgiu um distribuidor canadiano, a h264 e porque a sua produtora, a Força de Produção, na pessoa de Sandra Faria, decidiu também perceber que era importante investir num publicista. Curiosamente, Sandra é mais promotora e produtora de espetáculos do que de cinema... Está ainda mais feliz porque o filme agora tem visibilidade, está a ser visto pelas pessoas certas. E, se o sonho acontecer, lembra que será ainda mais especial num ano em que Steven Spielberg, graças a Os Fabelmans, deve andar por lá: "era como que fechar um ciclo - sonhei em fazer cinema depois de ver ET - O Extraterrestre, mas mais uma vez lembro que já não tenho idade para deslumbramentos, não obstante tudo isto ser uma panóplia de emoções para mim. Não vejo isto como um salto de carreira - daqui a um ano vou estar aqui a desencantar qualquer coisa para me entreter. Ainda não será desta que me mudo para uma mansão em Malibu. Sim, prefiro o mar a Beverly Hills...". Convém apenas lembrar que nos entretantos, A Balada de Sophie, a sua banda-desenhada feita com Juan Cavia, tem os direitos para desenvolvimento de série televisiva garantidos pela Universal para os próximos tempos. Hollywood já esteve mais longe....O Lobo Solitário é um thriller de 23 minutos sobre uma emissão de rádio pela madrugada fora que desvenda uma conversa entre um veterano radialista e um ouvinte com uma confissão terrível. Tudo filmado num só take e com muita conversa em... português, coisa que muitos poderiam considerar alergia a "material oscarizável". Mas há ali qualquer coisa que faz extremar emoções, é um filme com capacidade de agradar a diversos públicos e Filipe percebe isso: "a história tem algo de universal mas o facto de se passar numa rádio portuguesa talvez apresente um encanto e um fator exótico para o pessoal da Academia, é como se nós estivéssemos a ver uma rádio local na Birmânia. Tenho esperança que o filme levante algumas questões". O certo é que O Lobo Solitário é realmente um dos grandes momentos da curta-metragem portuguesa dos últimos anos, evitando a mera demonstração virtuosa do plano sequência..Se o "impensável" acontecer e Filipe for mesmo nomeado não se pense que vai ter uma atitude "blazé": "não, senhor. Vou curtir ir à cerimónia! Mas não vou sonhar com isso, só acredito nas coisas quando elas acontecerem. Estive quinze anos sem fazer cinema...". Agora, jura que não tem nenhum projeto cinematográfico na cabeça. Porquê? "Porque me habituei e fiquei viciado no entusiasmo de acreditar num projeto. Óbvio que estou mimado e é tão bom porque quando apanho uma coisa que gosto dou tudo! Não sei o que vem a seguir, se será música, banda-desenhada ou cinema"..Está em andamento a organização de algumas sessões no Maria Matos com os filmes portugueses desta shortlist dos Óscares, sabe o DN. Nesta altura, ainda não há detalhes mas a ideia promete lotações esgotadas. Como cineasta, Filipe Melo tem já no currículo a série Um Mundo Catita, feita como se de cinema se tratasse e Sleepwalk, maravilhoso conto americano feito apenas em dois dias..dnot@dn.pt