Festival Alkantara vive e até leva Victor Gaspar ao palco
Se dependesse de Victor Gaspar o Alkantara Festival provavelmente já não existia mas, dois anos depois de uma edição construída a ferros e suborçamentação, está vivo e recomenda-se. E até leva ao palco o ministro da dívida e do défice orçamental ou, pelo menos, o seu discurso de baixo contínuo na voz de Nuno Lucas, o intérprete português no quinteto de Joris Lacoste, que continua a orquestrar as palavras com impacto no mundo na sua Encyclopédie de la Parole, agora com Suite nº2. Não que a situação económica seja muito diferente da edição de 2014, quando Suite nº1 ABC abriu o festival.
"A realização do festival, propriamente dita, é tão dura como foi há dois anos, mas acho que nas condições mentais algo mudou: há esperança e isso faz uma diferença imensa. Neste momento estamos a construir futuro com isto", diz Thomas Walgrave, diretor artístico do evento. E isto é tudo o que desenha o Alkantara em 2016, um festival furiosamente ancorado no presente mas que vai lá atrás, ver o futuro no retrovisor. Em E se elas fossem para Moscou?, o espetáculo que hoje o faz arrancar, a encenadora e realizadora brasileira Christiane Jatahy parte do clássico As Três Irmãs, de Anton Tchekov, para construir uma experiência fortíssima sobre o Brasil de agora mesmo, da emigração e do papel da mulher. "Ela pega num texto de um homem russo que viveu há 100 anos atrás e faz com ele um espectáculo de mulheres. E organiza-o com uma estrutura bicéfala (uma peça e um filme, em sessões consecutivas), que torna claro como uma câmara pode manipular e dirigir a peça".
O Cerejal é a outra convocação da História do Teatro, pela companhia belga tg STAN, histórica e revolucionária ela própria e também na leitura que propõe de Tckekov. A mesma postura de Segunda-feira: Atenção à direita, o combate de boxe de Cláudia Dias à precaridade da actual cena portuguesa. Gonçalo Wadington em O nosso desporto preferido - Presente e Federico León em Las ideas também vão beber à prática desportiva para dar forma às obras que apresentam no Alkantara, criações arriscadas e provocadoras, como são os espetáculos de João dos Santos Martins e Cyriaque Villemaux, (Autointitulado), Takao Kawaguchi (About Kazuo Ohno) ou Quico Cadaval, Celso F.Sanmartin e José Luís Gutiérrez em Os contos de Joselín, ou as Performances para o Alkantara de Sofia Dias e Victor Roriz, os solos de Rabih Mroué (Riding on a cloud), Arkadi Zaides (Archive) e Christopher Brett Bailey (This is how we die). Ou ainda Radouan Mriziga (55) e Taoufiq Izeddiou, (En alerte), dois criadores que cresceram na medina de Marraquexe e que questionam a sua identidade.
"São duas leituras de uma religião que está estigmatizada e simplificada, em oposição à complexidade das pessoas que operam dentro desta cultura", resume Thomas Walgrave. E porque complexidade não implica sisudez, Philippe Quesne faz em La nuit des taupes (welcome to caveland), um espetáculo literalmente underground, com seis toupeiras gigantes que partilham o palco com Platão e "concertos de rock, vida e morte, escorregas em palco e momentos religiosos e literários. É uma grande festa", diz o programador. O mesmo acontece em Aqui há regras! do Collectif Jambe, a nova parceria de Antoine Defoort, artista responsável por espetáculos tão incisivos como hilariantes em edições anteriores. "Eles posicionam-se num lugar que permite olhar para o mundo com olhos muito grandes de crianças e lançar perguntas que os adultos já não fazem". Inesperado é também o mínimo a dizer da estreia absoluta de El Conde de Torrefiel, colectivo barcelonês que se apresenta pela primeira vez em Portugal com Escenas para uma conversación después del visionado de uma película de Michael Haneke. "Há blasfémia, nudez muito frontal e uma poesia imensa", avisa Walgrave, a sublinhar uma das muitas surpresas do festival que começa hoje e invade os principais palcos de Lisboa até 11 de Junho, quando Lula Pena dá a ouvir o seu novo álbum Archivo Pittoresco, a lançar no Outono.