Prestes a completar três décadas de carreira, celebradas no próximo ano, os Moonspell encontravam-se, como tantas outras vezes, neste já longo percurso, numa encruzilhada. Entre avançar por novos e desconhecidos territórios ou permanecer no conforto do legado que lhes garantiu o estatuto de maior banda de heavy metal portuguesa, optaram por cortar amarras e seguir em frente..O resultado é o recém-editado Hermitage, um álbum de corte com a sonoridade mais característica da banda, bastante mais próximo das novas tendências do pós-metal e do metal progressivo, mas também com tempo e espaço para ambientes psicadélicos mais retro, a fazer lembrar, em certos momentos, a escola dos Pink Floyd. E os fãs parecem ter-lhes dado razão, com o álbum a esgotar rapidamente na pré-venda, em ambos os formatos, vinil e CD..Como revela o vocalista Fernando Ribeiro, nesta entrevista ao DN, esta nova sonoridade foi desenhada pelo teclista e guitarrista Pedro Paixão e pelo guitarrista Ricardo Amorim, "os principais compositores" da banda, para enquadrar uma narrativa centrada num conceito de isolamento e solidão, surgido antes da pandemia, mas que afinal se revelou quase profético. Este é também o primeiro trabalho do grupo sem o baterista Mike Gaspar, entretanto substituído por Hugo Ribeiro, que já participou nas gravações do álbum, em Inglaterra, numa altura em que o confinamento já era regra. "Não nos era permitido estarmos os quatro ao mesmo tempo em estúdio, mas o que poderia ser um contratempo acabou por se tornar uma grande e inesquecível experiência, até pela temática de distanciamento subjacente ao disco.".Como é que surge este álbum, que aparentemente soa algo deslocado na discografia dos Moonspell, até pelos territórios musicais pouco habituais, para a banda, em que se desenvolve? A minha mãe costuma dizer que nenhum filho é igual. Apesar de a comparação ser um pouco exagerada, acho que o mesmo pode ser dito de cada um dos álbuns dos Moonspell. Este era um disco que já há muito queríamos fazer e de certa forma surge como resposta ao anterior, 1755, que era um trabalho muito mais urgente e imediato, quase operático. Sempre construímos a nossa música como se de um filme se tratasse, normalmente coloco uma imagem na cabeça do Pedro e do Ricardo, que são os principais compositores, e a partir daí eles vão criando os ambientes necessários para o conceito pretendido, que neste caso tinha a ver com isolamento e uma certa calma..Que leva até a uma espécie de corte com o passado musical da banda, concorda? Sim, é um disco totalmente livre de amarras, feito por pessoas adultas, que já não sentem aquela rebeldia adolescente e até um bocado datada do heavy metal mais clássico. No fundo trata-se de um disco mais contemporâneo àquilo somos hoje, porque à medida que fomos crescendo fomos deixando entrar muitas mais influências na nossa música..Há momentos no disco que fazem lembrar ambientes à Pink Floyd... É verdade, até porque o David Gilmour é talvez o guitarrista favorito do Ricardo. E eu próprio herdei um saco de discos de um tio meu, onde estavam alguns dos Pink Floyd, que ouvi com muita atenção. Neste disco, tanto o Ricardo como o Pedro foram não só compositores como também ouvintes. São muito poucas as bandas que conseguiram chegar onde os Pink Floyd chegaram, que são póstumos e por isso soam sempre atuais. Não nos querendo comparar a eles, este é talvez o nosso álbum mais clássico e mais refinado..Até a sua voz soa diferente, muito mais cantada do que urrada, como era habitual até aqui. Levei quase trinta anos a chegar lá, mas finalmente comecei a cantar um bocadinho [risos]. Convém dizer que fui vocalista quase por acaso, porque tinha algum jeito para escrever mas, especialmente, porque na altura não tive dinheiro para comprar uma bateria [risos]. Com o tempo aprendi que esta é uma função que tem de servir as necessidades da banda, e neste álbum foi necessário mudar, para cantar de uma forma mais atmosférica e intimista. Foi um processo que levei muito a sério e até tive aulas de colocação vocal..Se quando começaram a carreira, já há quase 30 anos, vos dissessem que um dia iam fazer um disco assim, de metal progressivo, como crê que reagiriam? Penso que ficaríamos intrigados. Na verdade nós crescemos numa época de fusão e de muitas experiências no metal, que levariam àquilo que hoje se chama de post-metal e que é atualmente o meu género favorito, exatamente por estar livre desses rótulos todos. A verdade é que há 30 anos ainda não tínhamos estudos para fazer um álbum assim [risos]..O que é que o novo baterista, Hugo Ribeiro, que substituiu o icónico Mike Gaspar, trouxe à banda? Em primeiro lugar quero dizer que esse foi um assunto tratado pelo Pedro e pelo Ricardo, porque a saída do Mike abalou-me um bocado e não me quis envolver nesse processo. De certa forma, foi um acontecimento que mudou a minha maneira de estar na banda, porque o Mike sempre foi o meu grande companheiro nos Moonspell. Fez-me perceber que as bandas, afinal, não são uma família, essa ilusão desapareceu de vez. E nesse sentido deleguei neles a responsabilidade de encontrar um substituto. O Hugo já estava no radar do Pedro há algum tempo, mas era necessário perceber se havia clique entre nós, e isso aconteceu. É um baterista muito experiente, com muitos recursos enquanto músico, mas acima de tudo é um gajo muito porreiro. Tivemos muita sorte de encontrar alguém assim, ainda por cima português..Como é que uma banda habituada a fazer longas digressões pelo mundo viveu um ano tão atípico como o de 2020? Ainda demos quatro concertos com público em Portugal e fomos a Inglaterra gravar um disco, não foi um ano totalmente perdido [risos]..E a temática do disco, o tal isolamento, não poderia ser mais atual. É verdade, foi gravado e acabado durante a pandemia, e é assim que vai ser lido no futuro, apesar de o conceito ter surgido em 2017, quando apontei algumas notas sobre isso no meu caderninho das ideias. Na altura já estávamos em distanciamento social, embora ainda não tivéssemos dado por isso. Vivemos um tempo em que não nos conseguimos entender em nada. Basta falarmos de raça ou religião para parecermos todos inimigos uns dos outros. No fundo, enquanto espécie, escolhemos a conectividade em vez da conexão, e a pandemia é apenas um acaso. Já a dimensão das consequências e a reação à mesma é resultado da forma como construímos o mundo, baseada num capitalismo selvagem e egoísta, que tornou cada um de nós não um universo mas um átomo..Como é que encara o futuro e curto e médio prazo da indústria musical, à luz das consequências da pandemia? Vamos avançando passo a passo. Devo dizer que sinto um grande orgulho na minha classe, pela forma como se unia, nomeadamente em Portugal, para provar e demonstrar que a cultura é segura. Temos alguns planos, que vão do A ao Z, mas neste momento já só apontamos para o segundo semestre. Estamos a pensar realizar alguns pequenos concertos, na zona de Lisboa, para promover o álbum, e depois logo se vê, até porque se tudo correr bem para o ano vai haver uma competição feroz ao nível dos eventos musicais. Ou então continua tudo como está e não acontece outra vez nada. Mas nada disto é novidade para os músicos, que desde há décadas são uma espécie de baratas, capazes de resistir a todas as mortes já anunciadas desta indústria.