É o atleta mais medalhado do País. Tem 121 medalhas internacionais e ambiciona ser o português mais medalhado em Jogos Olímpicos. Tem uma prata e um bronze, mas quer o ouro em Paris 2024. Tudo começou com 11 anos numas férias de verão, quando descobriu a canoagem..Ganhou a primeira medalha internacional em 2005. A Portuguesa ainda é a música mais bonita de se ouvir ao fim de 17 anos? Sem dúvida. Ainda agora no Europeu virei-me para os portugueses que lá estavam e disse: "Vocês vão estar a aqui de sorriso de orelha a orelha e eu vou estar lá de pernas a tremer como se fosse a primeira vez". E foi. Nas modalidades coletivas ouve-se A Portuguesa no início dos jogos, mas na canoagem só ouvimos o hino se ganharmos e isso dá-lhe mais emoção..Ganha mais de 50% das provas em que participa. Quanto é que odeia ficar em segundo? 110%! Odiar não é bem o que sinto... é mais não me sentir completo. O segundo e o terceiro lugar não me completam. Eu sem um ouro sou um ser incompleto. Sinto que algo em mim falhou. Se calhar o adversário foi melhor e mais forte, mas no meu pensamento eu é que errei ou não consegui dar o meu melhor. Por vezes a diferença entre ser primeiro e segundo é milimétrica, mas para mim é um amargozinho de boca ficar em segundo ou terceiro. Tenho um bom competir, além de um enorme respeito por quem compete comigo. Na canoagem temos primeiro uma amizade e depois uma rivalidade..Já são 121 medalhas. Há algumas que já nem se deve lembrar onde as conquistou e quando... Se pegar nelas sei perfeitamente a história de cada uma e até dos colegas do pódio. As medalhas Olímpicas são as mais importantes, assim como a primeira medalha internacional (2005), os quatro ouros mundiais... são medalhas que me fazem sentir bem..Agora, em 15 dias, foram mais seis medalhas nos Mundiais e Europeus. Ter este desempenho num ano pós-Jogos Olímpicos, pós-pandemia e em plena paternidade é obra... A alta competição puxa por mim. Estar em boa forma física e mental é a única forma. Há países onde os medalhados olímpicos fazem um ano sabático ou optam por competições não continentais para poderem fazer um refresh à sua saúde física e mental. Um atleta em Portugal tem dificuldade em fazer isso. Se quiser um ano mais light vou ser alvo de críticas e colocado em causa, perder apoios e isso obriga-nos a tentar estar no topo o maior tempo possível. Mas isso tem um preço e mais tarde ou mais cedo paga-se, com desgaste físico e mental..E onde fica a chamada (e muito em voga) a saúde mental? É tentar não pensar muito nisso, para não aumentar o stress emocional. Quanto mais eu pensar que vou estar longe da minha filha, no desgaste físico do treino e que os adversários têm melhores condições... Não sou uma máquina, sou um ser humano e tento criar uma bolha protetora e trabalhar o melhor possível. Desde 2021 que trabalho com uma psicóloga e tem sido uma grande ajuda e uma mais-valia em termos emocionais e psicológicos. Mas isso não é tudo. É preciso haver uma maior valorização do atleta, dos resultados, pensar na carreira e no pós-carreira. Pensar que há atletas que representam o País ao mais alto nível e que quando terminam a carreira passam dificuldades. É caso para questionar onde estão as pessoas que lhes deram condecorações e palmadinhas nas costas. É preciso criar condições para que isso nunca mais aconteça..Não vive numa bolha... Nunca. Eu cresci no campo com os meus avós e uma das coisas que marcou esses tempos foi a entreajuda entre pessoas na altura das colheitas. Na segunda-feira vai-se apanhar maçã para o Sr. António e na quinta estamos a ajudar o Sr. João na vindima. Todos na aldeia se revezam para que as colheitas sejam feitas. Claro que como atleta tenho momentos de pensar só em mim, estar focado e preparar-me para as competições, mas sou pessoa de ouvir, observar e tentar perceber a sociedade que me rodeia. Não gosto muito de falar disso, mas já há alguns anos que eu e a minha família oferecemos cabazes alimentares a famílias carenciadas no Natal, porque sabemos olhar para o lado e ver a realidade dos outros. Se outros setores fossem tão solidários como o desporto teríamos uma sociedade melhor. A interação social é muito importante para mim, a falta de contacto com as pessoas foi o que mais me custou na pandemia. Uma das coisas que mais gosto é sentar-me na esplanada a falar com pessoas, conhecidos e desconhecidos. Só com uma boa troca de ideia podemos crescer como pessoas..Um atleta português que ganha um ouro nos JO recebe 50 mil euros, em Espanha 110 mil e em Itália 180 mil euros... É comparar o incomparável. E esses valores são para o ouro. E quantos ouros tivemos? E quem não ganha o ouro... Uma medalha nos JO é um feito quase inédito para a aposta que é feita no desporto excluindo o futebol. O meu colega húngaro que foi campeão olímpico no ano passado, tem 24 anos e uma bolsa vitalícia de 1500 euros/mês. Temos de consciencializar os políticos e o sistema que desporto não é só futebol e é preciso apostar numa política desportiva forte que chame atletas para a competição. Saber que se dedicar e apostar as fichas todas no alto rendimento pode ter um futuro garantido. Estamos a menos de dois anos de Paris 2024 e os apoios para o novo ciclo Olímpico ainda não foram aprovados. Isso diz muito..Isso também se aplica à sociedade? A sociedade precisa abandonar alguns preconceitos e estereótipos para com os desportistas. Eu quando entrei na universidade com o estatuto de atleta de alta-competição achavam que era um malandro do desporto que entrou por via de facilidades. Mas o malandro do desporto acordava às 06.00 para treinar, tomava o pequeno almoço, ia para a universidade e no final do dia em vez de ir viver, ia treinar outra vez. Isto dia após dia. Nem toda a gente é obrigada a gostar de canoagem, mas precisamos de ser mais patriotas e nacionalistas. Somos bons. Temos de nos valorizar. Temos excelentes atletas e é preciso que quem manda nos dê mais valor e não olhe apenas aos pódios. Eu tive seis medalhas em 15 dias, agora vou estar sem grandes competições durante algum tempo e vou cair num ciclo de esquecimento até me superar e conseguir nova medalha. E depois voltam a dizer "o Pimenta é o maior"... mas o Pimenta já ganha desde 2005..É um dos cinco atletas com duas medalhas olímpicas em toda a história do desporto português. Sente que por ser canoísta não é tão valorizado como um atleta do judo ou do atletismo por exemplo? Um bocadinho. A canoagem não é fácil de ser praticada e ao ter menos praticantes tem menos visibilidade. Eu já podia ter três se não fosse aquela situação no Rio 2016 e seria o mais medalhado. Algo para que agora trabalho. É verdade que a canoagem tem menos visibilidade e menos apoios. As federações recebem por número de praticantes e tendo menos federados a canoagem recebe menos. Esta é uma política que por si só não serve os interesses de alta-competição. Se uma federação inscrever atletas a torto e a direito só para ter apoios... passamos a ter praticantes-não praticantes. Tem de haver compensação por mérito e objetivos e só assim seremos competitivos..E como se cativam novos talentos? Com o Fernando Pimenta como exemplo? Eu abdiquei de muito. Houve tempos em que ganhava zero, tirando dores musculares e dores de cabeça. Quando acabei a universidade podia ter dito adeus e acabava-se o Fernando Pimenta. Não podemos deixar que talentos desistam do desporto por falta de apoios. Chega a um ponto em que competir pelo amor à camisola se torna frustrante e leva a abandonos e ao desinteresse dos mais jovens. É impossível ser atleta de alto nível e ter uma profissão paralela. Eu tenho uma ou duas tardes livres em sete dias, por exemplo. Os novos talentos precisam de estabilidade. Saber que podem atingir o patamar do Pimenta e ter de fazer contas ao final do mês pode levar a que desistam. O futuro das modalidades depende muito disso. Os pais e os clubes não podem ser o suporte financeiro da política desportiva. No meu caso ter o Benfica é um suporte e uma estabilidade maior, que de certa forma me profissionaliza..Aos 33 anos que ambições ainda tem? Muitas. A ambição de continuar a conquistar medalhas para que os portugueses quando falarem de desporto refiram a canoagem e o Fernando Pimenta. Ir buscar o ouro olímpico que me falta, depois do bronze (Tóquio 2020) e da prata partilhada com Emanuel Silva em Londres (2012). Tenho noção que tenho adversários fortes e também querem....... e têm 20 e tal anos... Sim, mas a idade não me assusta. Posso chegar aos 40 anos e conseguir uma medalha olímpica. Em Tóquio vi colegas de 41 e 42 a conseguirem medalhas. A idade não é um entrave nem põe mais pressão..O fim da carreira é algo que o atormenta? O corpo já fez alertas? O corpo dá alertas a cada treino (risos). Não me atormenta nada. Ainda tenho muita coisa para fazer e conquistar antes do fim da carreira. Vai ser quando eu quiser. Quero é estar ao mais alto nível e ter consistência como atleta. Penso no pós carreira, mas no sentido do que fazer a seguir - continuar ligado ao desporto e contribuir com algo para ajudar o desporto português..E imagina-se a sair de cena depois de uma medalha ou só quando não conseguir entrar no caiaque? Até me sentir feliz e competitivo. Para mim assim é que faz sentido. Se for campeão olímpico em Paris 2024 não me vejo a dizer adeus. Muitos dirão para sair pela porta grande, mas essa porta já é minha há muito tempo. O meu palmarés é superior a um mau resultado de final de carreira..Se lhe pedir um desabafo do fundo do coração... O que mais me magoa é a falta de apoios ao desporto. O sistema político precisa olhar para o desporto. Há países que diminuíram as despesas com a saúde ao apostar na prática desportiva. O estilo de vida ativo é melhor que a obesidade. Na semana passada ajudei uma pessoa no rio. Se eu não estivesse lá podia ter-se afogado, não é porque não sabia nadar... é porque não tinha a condição física para enfrentar a correnteza do rio. Se o desporto faz bem à saúde, porque é que o material desportivo tem um IVA equiparado a bens prejudiciais à saúde? Só para fazer receita? E porque é que essa verba não é canalizada para o desporto? Nos EUA há centros de alto rendimento financiados com parte do imposto gerado. Fica a ideia. Isso e rever a atribuição das bolsas de preparação. Não só o valor, mas a distribuição. São iguais para um campeão e para um atleta que fique até ao oitavo lugar nos JO. Se ganho o mesmo ficando em oitavo, para quê matar-me para ser primeiro. Ganho mais o prémio da medalha e...?.Reage mais ao picanço ou ao elogio? Às duas. O elogio serve para me manter acordado e ver que estou a fazer um bom trabalho, a construir um legado, mas quando sou picado ou alvo de uma critica destrutiva não gosto e tento mostrar que é infundada. Se for construtiva encaixo..Mas nem sempre se está no espírito de aceitar... Nem toda a gente gosta do amarelo e por isso tenho de respeitar quem gosta de outra cor. Tentar ter empatia e perceber a reação da outra pessoa. Já houve algumas situações de falta de respeito, mas eu até nem me posso queixar. Sendo atleta do Benfica acho que sou consensual entre os portugueses. A clubite leva a alguns exageros, principalmente nas redes sociais, mas nunca fui alvo de comentários abjetos como acontece com outros atletas. Sei que nunca vou conseguir agradar a todos, mas tento ser um bom atleta e um bom cidadão..Até que ponto os tempos com os avós no campo o moldaram como atleta? Nunca pensei nisso...Talvez na questão da valorização do trabalho, o sacrifício inerente a uma vida na agricultura e a não deixar para amanhã o que posso fazer hoje. São coisas que agora como pai gostava de passar à minha filha. Não quero que ela cresça a pensar que as pêras e as maçãs vêm do supermercado (risos)..Agora percebo a analogia dos calos nas mãos serem as suas medalhas inviseis... Outro dia estava a falar disso com a minha avó - sem comparação que ela tem mais calos que eu do trabalho na agricultura - são as medalhas do dia a dia. Feridas de combate. Quando estou sozinho e olho para as mãos lembro-me de tudo o que consegui, foi tudo na base do trabalho, disciplina, rigor, motivação e de muito, muito sacrifício. A canoagem é um desporto muto físico. Estamos sempre a colocar o corpo à prova, levá-lo ao limite e muitas vezes isso nem é saudável..É daqueles pais que mudam fraldas ou dos que ficam mais com a parte boa da brincadeira e do mimo... Sou um pai ausente, mas nem quero pensar no dia em que ela me perguntar isso. Isso mexe comigo porque noto que ela sente a minha ausência. É o que mais me custa. A chupeta no pódio Olímpico simboliza a força que ela medeu com o seu nascimento. Tenho treinos, provas, passo muito tempo fora. Quando estou em casa faço tudo, mudar fralda, dar o biberão, passear... menos dar banho. Não me sinto à vontade. É um ser tão frágil, tenho medo que escorregue ou de fazer força a mais ao agarra-la, mas é uma das coisas que já está combinado é eu começar a treinar essa parte... nada que com treino não vá lá..isaura.almeida@dn.pt