Faltou um João Centeio

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"O homem que melhor subiu esta serra foi o João Centeio, tinha eu uns 17 anos. Ele nem precisava de se pôr em pé, ia sempre sentado no selim." Encostado ao muro da curva que anuncia o início das dificuldades para os ciclistas, ainda na Covilhã, Serafim Azevedo, de 69 anos, desafia a memória enquanto espera pelo pelotão que há-de enfrentar a subida até à Torre, pelas Penhas da Saúde, palco da tal vitória de João Centeio que ficou para sempre registada no imaginário do senhor Serafim e de todos os serranos da sua geração. "Chegou lá cima com quase meia hora de avanço e quando lá chegou mandou-se para a piscina", ajuda António Metelo, um pouco mais ao lado. Agora, nenhum deles consegue dizer o nome de qualquer dos ciclistas que se preparam para entrar na Covilhã. E também não iriam poder assistir a nenhuma exibição "à João Centeio".

A etapa de ontem contava com uma subida inesperadamente mais dura até à Torre, devido às alterações de última hora, mas não conseguiu deixar grandes marcas na frente da classificação. O vencedor foi o espanhol Jorge Ferrio, da Spiuk, que "não conta" para a geral (52.º), e quase todos os favoritos desceram juntos da Torre até Gouveia. Inclusive o russo Vladimir Efimkin, que continua a demonstrar ser um líder duro de roer. E de uma etapa de alta montanha acabou por sair mais beneficiado o menos trepador dos três candidatos ao triunfo final, Cândido Barbosa, que não só não perdeu tempo como ainda conquistou umas "migalhas" sobre a meta - dois segundos sobre o espanhol Francisco Perez e o camisola-amarela. Ele que, à partida, acusava até a organização de ser "mais um adversário", enquanto o seu director desportivo temia que a Volta pudesse mesmo "ficar decidida hoje [ontem]" com a introdução da subida da Covilhã até às Penhas da Saúde. Américo Silva lembrava a Volta de 2003, conquistada pelo seu pupilo Nuno Ribeiro." Nesse ano ele conseguiu ganhar 1.40 minutos nesta subida e acabou por ganhar a Volta".

Mas desta vez ninguém conseguiu imitar Nuno Ribeiro. E muito menos repetir o show de João Centeio, que Serafim Azevedo se lembra de ver arrancar "ali na Varanda dos Carqueijais" - uns cinco quilómetros depois do início da subida, onde a estrada se começa a assemelhar a uma parede em curvas (chega a ter 13 graus de inclinação). "Deu uma sapatada e deixou tudo para trás. Chegou com 17 minutos de avanço para o segundo. Acho que corria para o Sangalhos nesse ano", tenta precisar. Na verdade, João Centeio corria pelo Águias de Alpiarça, na Volta de 1962, e chegou com 11 minutos de avanço às Penhas da Saúde, onde, de facto, assim que terminou a etapa foi mergulhar na lagoa ali ao lado. Centeio, que nunca ganhou uma Volta a Portugal - acabaria essa de 1962 em 31.º, vítima de várias quedas -, não desapareceu do imaginário das gentes da serra.

Ontem, a serra da Estrela voltou a contar com centenas de pessoas estrada acima, piquenique improvisado, melão, queijo e vinho expostos junto aos carros, e casaco de pelo para enfrentar o frio (8º graus) e nevoeiro que tomaram conta do ponto mais alto de Portugal Continental - que ainda há três dias registava um calor terrível. Mas não assistiram a subidas de mestre. Os momentos mais emotivos foram protagonizados pelo búlgaro Krassimir Vasilev, da Duja- -Tavira, que caiu por duas vezes e por duas vezes se levantou para chegar lá ao cimo da Torre em primeiro, reforçando a liderança na camisola azul da montanha. De resto, o espanhol Francisco Perez, da Maia, foi incapaz de deixar irremediavelmente para trás Cândido Barbosa ou Vladimir Efimkin no seu terreno favorito. E, assim, com cuidados redobrados devido ao nevoeiro que não deixava ver mais do que cinco metros à frente, desceram todos juntos até Gouveia. Ou quase todos, pois o espanhol Jorge Ferrio conseguiu adiantar-se a menos de cinco quilómetros da meta e ganhar a etapa.

O espanhol Jorge Ferrio (52.º classificado), da Spiuk, ganhou a etapa de ontem em Gouveia, mas a segunda passagem do pelotão pela serra da Estrela quase não provocou alterações na frente da classificação. Entre os favoritos ninguém se mostrou capaz de ganhar tempo na ascensão até à Torre, enquanto na berma da estrada se lembrava o nome do homem que melhor subiu a serra. Vladimir Efimkin manteve a amarela.

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