Faial no centro do mundo

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Entre 16 e 26 de julho de 1924, Raul Brandão calcorreou os caminhos da ilha do Faial, numa das paragens do seu cruzeiro atlântico, berço desse delicado livro, com textos desenhados como aguarelas, As Ilhas Desconhecidas (1926), compreendendo os Açores e a Madeira. Foi a sensibilidade cromática deste autor que popularizaria a designação de Ilha Azul, para uma terra que já conheceu outros nomes, como Ventura e São Luís, ao tempo do seu achamento. Não preciso de nenhuma razão especial para regressar a este território encantado de Portugal, dominado pela dupla majestade, marítima e telúrica, do grande Pico, que batiza a vasta ilha, mesmo em frente, do outro lado desse canal imortalizado por Vitorino Nemésio. Desta vez o ensejo foi um convite para debater "Turismo Sustentável e Conservação da Natureza", a propósito dos 30 anos da criação do Jardim Botânico do Faial (JBF). Uma ocasião imperdível para reencontrar colegas, como os professores Dalila Espírito-Santo e Eduardo Dias, que partilham a mesma preocupação de fazer dos valores ambientais do nosso país um capital natural, uma alavanca duradoura de desenvolvimento, que beneficie, diretamente, as pessoas que dele cuidam. Nos Açores, sobretudo com a abertura das rotas de voos low-cost, o tema está a ser discutido com rigor. Nada comparável à desorientação continental, onde se imolam tesouros naturais com gigantesco potencial económico, como no Tua, e, num assomo senil, se pretendem semear explorações de combustíveis fósseis, em conflito direto com o turismo, que, ainda mais que as máquinas e aparelhos, constitui a principal exportação portuguesa.

Falando com o diretor do Parque Natural do Faial (PNF), João M. B. Melo, ou com Pedro Casimiro, coordenador do JBF, percebe-se como é a juventude qualificada o grande fator atual de desenvolvimento dos Açores. Aí a política pública de ambiente tem um papel estratégico e disciplinador. Em 2007 operou-se uma viragem no mapeamento administrativo da conservação da natureza no arquipélago, que aumentou as competências de cada ilha, permitindo mais subsidiariedade, sem perder visão do todo e capacidade de coordenação geral. Só no Faial temos 13 áreas protegidas, de várias categorias, desde reservas naturais a áreas de paisagem protegida, passando por zonas dedicadas à gestão de recursos. Esta política, contudo, entende a conservação na natureza de modo esclarecido e expansivo. O JBF, como bem o mostra um documentário que lhe dedicou Paulo Henrique Silva, integra jovens investigadores apaixonados pelo seu trabalho, que não só ampliam o conhecimento das espécies e habitats açorianos como promovem ações inovadoras de conservação (como um banco de sementes endémicas do arquipélago), apoiando ainda ações de substituição de espécies invasoras, por espécies autóctones.No Faial, o património natural abraça de modo inseparável as marcas da história e da cultura. Desde o povoamento no século XV, com a chegada dos flamengos chefiados por Josse van Huerter, o Faial, e em particular a cidade da Horta, sempre foi um lugar de encontros cosmopolitas. Raul Brandão refere-se a isso, num discreto erotismo, quando escreve a cavalgada ocasional pelas ruas solitárias de "um meteoro loiro", significando com isso as mulheres estrangeiras que trabalhavam nas diversas empresas de cabos submarinos, na primeira metade do século XX. O mesmo ocorre hoje, no Café Peter, onde peregrinam as tripulações de centenas de veleiros, transformando o porto da Horta numa mítica etapa. Outros encontros, menos amenos, também aí ocorreram, como foi o caso da sangrenta batalha naval entre um brigue americano, o General Armstrong, e três vasos de guerra ingleses, travada mesmo em frente do Forte de Santa Cruz, em setembro de 1814. A ligação aos EUA é notável. Desde logo através da família Dabney - diplomatas, empresários e filantropos - que durante três gerações marcou a ilha. Mais perto de nós, com o surto de emigração para a América, patrocinado pelo então senador John F. Kennedy, após a crise vulcânica dos Capelinhos, em 1957-58 (hoje, excelentemente musealizada). Mas o mais surpreendente é a documentação, publicada apenas há vinte anos, do presidente Franklin D. Roosevelt, com uma estatura igual à de Washington ou Lincoln, que, apaixonado por uma visita aos Açores em 1918, acalentava um sonho, que a sua morte em abril de 1945 impediria de concretizar: colocar o Secretariado-Geral das Nações Unidas no centro do mundo. Mais precisamente na cidade da Horta.

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