Fago - Sinfonia de sabores num restaurante em Marvão
Conheci Daniel Boto há um ano, quase dia por dia, e desde então este delicioso almoço no seu Fago (onde brilha o chef José Diogo Branco) estava combinado. Acontece agora, em cima do Festival Internacional de Música de Marvão (FIMM), que se inicia amanhã e tem como diretor artístico Christoph Poppen, alemão que em 2010 se apaixonou por esta vila alentejana, situada a mais de 800 metros de altitude, no Alto Alentejo.
"Cheguei e simplesmente apaixonei-me. Foi uma atração tão forte que me atingiu o coração, e a pequena casa que comprámos é um símbolo disso. A perfeição do lugar exerceu sobre mim um magnetismo espiritual tão forte como nunca tinha experimentado em toda a minha vida", tentou há um ano explicar o maestro e violinista, sob o olhar cúmplice da mulher, a soprano Juliane Banse, num almoço no restaurante da Pousada de Santa Maria de Marvão, que contou também com Daniel, um filho da terra que é o diretor executivo do FIMM, que vai na 9.ª edição. Já esse almoço, que originou uma entrevista/perfil publicada no DN em agosto passado, era para ter sido no Fago.
Com casa de família na Aldeia de Galegos, a Daniel não foi preciso descobrir o encanto de Marvão. E depois de ter estudado em Coimbra no Mestrado em Estudos Artísticos, regressou quando o país entrou em crise em 2013 e apostou no turismo rural. Não tardou muito para que outro estudante de Coimbra, Diogo, se lhe viesse juntar. O surpreendente, digo eu, é que Diogo trocou o Curso de Medicina, desencantado com a experiência nos hospitais, por uma carreira de chef e longe de casa. "Tenho raízes em Trás-os-Montes, mas sou do Porto. Depois de Coimbra, Marvão. Costumo dizer que vou descendo o país", comenta, entre risos.
O Fago é pequeno, e a carta aposta na simplicidade: três entradas à escolha, três pratos principais, duas hipóteses de sobremesa. Vim acompanhado e deu para dividir e provar mais. Começámos por uma Tempura de courgette, queijo da serra de São Mamede, tonnato, segurelha e poejo e um Tártaro de novilho alentejano, agrião e pão. Prosseguimos com um Panelle, pimentos, figos, beldroegas e alioli e um Secreto de porco preto, batata, alperce, nabiças e mostarda. Fechámos com um Gelado de folha de figueira, morango, limão e merengue e uma Massa frita, gelado de chocolate 70%, coco e amoras de São Julião. "A carta vai mudando", alerta Daniel, explicando que Diogo "está sempre a encomendar livros de cozinha, a procurar novas ideias, a experimentar", não perdeu o seu lado de cientista.
"Volto e meia, ligo ao meu pai e pergunto: "Como é que tu fazes isto ou como é que a avó, lá em Mogadouro, temperava isto?" Mas não faço cozinha tradicional, e acabo até por me inspirar num território que não é o meu. Mas é o que faz sentido, em termos dos ingredientes que estão disponíveis, como o porco preto, e depois há estas pontes em comum com Trás-os-Montes, a castanha, o azeite, o vinho, os enchidos, por isso quando vim para cá senti-me muito em casa", explica Diogo, que no Alentejo descobriu as beldroegas.
Enquanto conversamos, Daniel vai servindo uma ginjinha. Também da região é o vinho que bebemos, Aventura 2020 tinto, de Susana Esteban, enóloga espanhola que se fixou do lado de cá da fronteira. E uma palavra também para o azeite biológico, produzido na Quinta Azeitona Verde. Nisto de comprar local e usar os produtos da época, entra também uma alemã que faz agricultura biológica e vende ao Fago, e ainda o talho Paulino & Esposa, de Portalegre, e a empresa Beloteiros, de Arronches, mestre no porco preto.
Os dez dias do FIMM fazem o Fago encher com uma clientela ainda mais internacional do que é habitual, entre músicos e espectadores. O Fago abrirá das 16 à meia-noite e, se para jantar uma reserva é recomendável, pode-se ir mais cedo e petiscar, vir depois de ouvir uma bela sinfonia ou até beber um cocktail antes de ir ouvir o fado que se vai cantar na cisterna do castelo, logo na primeira noite. Fora desta época, o Fago abre de quinta a domingo, com jantares sempre, e almoços ao fim de semana. A ementa atualizada está disponível para consulta em fagomarvao.com.
Houve um percurso até Daniel e Diogo abrirem o Fago. Primeiro foi criado o Clube Gastronómico dos Galegos e os Petiscos Pedidos, com o chef a criar um conjunto de pratos a partir de sugestões prévias de quem vinha comer entre amigos; depois foi a vez dos "Isto não é...", inspirado no Ceci n'est pas une pipe, de Magritte, e nas viagens a Abu Dhabi, Espanha, Inglaterra, Itália ou França; com a chegada da pandemia, em 2020, passaram a aceitar encomendas de famílias obrigadas ao confinamento em casa. "Eu ia fazer as entregas a Portalegre, o Diogo a Marvão e Castelo de Vide, e chegávamos a conduzir mais de 100km cada um no final das entregas... Era de loucos, mas ficávamos felizes por sentir que era algo que fazia a diferença no estado de espírito delas!", conta Daniel.
Quando a covid-19 abrandou, continuaram a acelerar. "Começámos a desenvolver uma ideia: abrir o Fago, com caráter permanente, sob a forma de restaurante, em Marvão. Encontrámos um espaço e dedicámos o restante tempo da pandemia e os sucessivos confinamentos a fazer a obra, uma obra de raiz, mesmo no centro da Vila de Marvão. Continua a ser, em tudo, semelhante à Casa dos Galegos: como se fosse a nossa sala de estar e como se todos os dias recebêssemos amigos para jantar connosco. Abrimos em outubro de 2021, e cá estamos nós, com vontade de continuar a explorar todas as possibilidades gastronómicas com que os ingredientes locais e sazonais nos desafiam", conta Daniel. Que acrescenta, orgulhoso no seu Fago (palavra que vem de "comer" em grego): "Criámos o espaço que nós próprios gostaríamos de frequentar, sem ter que sair de Marvão. Um espaço para todos, sem formalidades, onde os ingredientes da melhor qualidade possível são protagonistas, e onde todos, sem exceção, são bem-vindos".
Se Daniel é a alma empresarial, e também o chefe de mesa, ajudado no serviço por Maria Morais e Sara Lacerda, Diogo é o maestro dos sabores. E sim, se trocou os hospitais pela cozinha, esta sempre esteve presente, como relembra: "Eu já cozinhava. Nos meus pais, nos meus avós. Quando ia a Trás-os-Montes nos verões, na Páscoa, no Natal, aquelas lareiras, toda a gente ali a volta, aquelas alheiras na brasa. E mesmo no Porto, os almoços de domingo eram sempre uma festa, os primos todos, o cabrito, aquilo eram rituais, e o meu pai também gosta muito de cozinhar. Mesmo na universidade e tinha necessidade de fazer um intervalo ia cozinhar. "Tenho aqui uma hora antes de retomar os estudos, os apontamentos, então vou fazer um bolo, rápido". Aquilo libertava-me de uma forma tremenda."
No primeiro dia, o Festival tem a gala de abertura às 19.30, no pátio do Castelo de Marvão, com a Orquestra de Câmara de Colónia, dirigida por Christoph Poppen. O Presidente da República costuma vir para o encerramento, este ano no fim de semana de 29 e 30 de julho, trazendo o corpo diplomático acreditado em Lisboa, que se maravilha com esta parte de Portugal, como já vários embaixadores me testemunharam. Talvez Marcelo Rebelo de Sousa venha aqui ao Fago, pelo menos beber uma bela Ginjinha da Despensa Franciscana.