Fados 67. O suprassumo do "milagre" Amália

Frederico Santiago saiu (por momentos) dos arquivos da Valentim de Carvalho com um CD triplo que nos mostra uma Amália Rodrigues plena. <em>Fados 67</em> resulta de dois anos de sessões da fadista naquela editora e traz à tona mais um conjunto de temas inéditos desta fonte inesgotável.
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Frederico Santiago explora um filão de ouro. Desde 2014 que se dedica ao espólio de Amália na Valentim de Carvalho e rejubila a cada descoberta. Ei-lo de olhos a brilhar e a atropelar palavras com o entusiasmo de mostrar ao mundo o resultado da sua mais recente expedição aos arquivos da editora: chega-nos às prateleiras Fados 67 e os adjetivos parecem não lhe chegar.

"Amália fez tanto e tão bom.... é o meu disco favorito dela" começa por dizer. "É o disco em que ela está com a voz mais desenvolvida mas ainda com as potencialidades todas, dois anos depois grava aquele álbum que se considera ser o melhor álbum dela que é o Com que Voz, que é extraordinário... mas aqui temos sessões que ocorreram em dois anos, e onde a Amália gravou tudo. Não há nada quase que ela não toque aqui a não ser flamenco, que ela gravou alguma coisa, mas neste disco há desde folclore com os Caracóis, coisas em francês, o Inch"Allah, L"important C"Est la Rose, e depois muito fado tradicional."

No total, 79 faixas, nem todas inéditas - as primeiras 12, do disco 1, correspondem ao LP homónimo, Fados 67, editado há meio século. E nem todas as faixas são músicas. "Algumas são só excertos. Aproveitei restos de bobina, às vezes apagavam coisas para gravar outras e no fim restavam estes excertos e eu achei que são registos únicos, como o Fado Acácio, que termina o disco." Ou o excerto de Quem o Fado Calunia, no início do terceiro CD, em que Amália arranca o tema e interrompe ao fim da primeira estrofe: "Hoje não me apetece cantar, estou triste para este, estou alegre para os outros", ouve-se a diva a dizer. Cada pedacinho é precioso.

Neste Fados 67 juntam-se as gravações com o conjunto de guitarras de Raul Nery. Amália tocou pela primeira vez com esta formação no Lincoln Center em 1966 e continuou durante dois anos. Nery não conseguia acompanhar a fadista nas constantes digressões ao estrangeiro, lembra Santiago, mas Amália acabaria por manter o quarteto instrumental com outra formação.

É o terceiro álbum com originais de Amália que Frederico Santiago organiza este ano. Em abril saiu A Una Terra Che Amo, CD triplo com registos de digressões nos anos 70 em Itália, com a fadista a cantar temas do folclore italiano; em outubro, Coliseu, com o concerto de 1987, que marcou o encontro de Amália com o seu público, já mais que coroada no estrangeiro. O investigador não se cansa de referir esta circunstância: o reconhecimento de Amália em Portugal chegou muito depois do do estrangeiro.

Mas chegou. E renova-se. Estas pepitas de ouro que nos vai dando a escutar têm, também, trazido novo público. "Há toda uma geração entre os 20 e os 30 [anos] de pessoas completamente fascinadas pela Amália e que estão a conhecer isto pela primeira vez. Isso por um lado é muito bom, é o reconhecimento do trabalho que estamos a fazer, por outro lado as pessoas não conhecem a Amália, têm a imagem de uma mulher que ia para o Coliseu já com alguma idade, há aquilo que o Herman fazia, nos programas dele, com o Joaquim Monchique, mas não percebem que foi uma das maiores cantoras do século XX. Mesmo. E foi assim considerada pelo mundo inteiro."

As sessões na Valentim de Carvalho são especiais: "o ambiente era de tal maneira familiar, seja porque o dono era o Rui Valentim de Carvalho, que era muito amigo dela, seja porque o Hugo Ribeiro, o técnico de som, eram amigos, e ele sabia gravá-la como ninguém... A Amália era capaz de chegar lá às onze da noite e sair às sete da manhã e se calhar gravava duas coisas porque conversavam, jantavam, o Alain Oulman levava os vinhos, embora ela não bebesse nada como dizia o Hugo Ribeiro. Bebericava um champanhe para festejar um take que tinha saído como eles queriam... era como se estivessem em casa."

O coordenador desta edição explica o que faz Amália ser tão especial. E intemporal. "Hoje em dia há muita gente a cantar o fado que se espalha ao comprido quando canta um fado tradicional porque não sabe estilar, canta sempre aquela melodia como se fosse uma canção. E não percebe que atrasar um bocadinho ou adiantar... nem sei explicar... é aquela coisa que distingue um cantor de um fadista", refere. E a excelência afirma-se no fado tradicional, defende. "As pessoas pensam que o fado tradicional é o fado antigo, não é nada disso. O fado tradicional é um fado sem refrão, não tem que ver com ser mais antigo do que o outro, embora tenha uma tradição que às vezes nem se sabe quem é o autor, como o Fado Menor ou o Fado Corrido. Mas há outros grandes fados que foram compostos, como o Fado Bailado, do Alfredo Marceneiro, que deu a Estranha Forma de Vida, que a Amália aqui gravou com outra letra que é o (tema) Meu Nome Sabe-me a Areia, ou o Povo que Lavas no Rio, que é o Fado Vitória, do Joaquim Campos, que é outro cantador do início do século. Esse fado estrófico, que é um fado muito especial, muito difícil, exatamente por ser sempre a mesma melodia repetida as vezes que a estrofe do poema existirem. Se não for um grande fadista a fazê-lo pode ficar monótono, é esse estilar em cada estrofe que faz que se veja a raça de um fadista."

O trabalho de pesquisa e edição de inéditos da fadista não tem fim à vista - "não estamos perto do fim, nem pouco mais ou menos". Cada descoberta é uma alegria - "Amália era muito fora do seu tempo, não interessa se estava à frente ou atrás, era completamente intemporal, e isso trespassa na arte".

Frederico Santiago não é modesto nas palavras, já se sabe: "Eu acho que este disco é o suprassumo deste milagre. Eu não gosto de dizer milagre porque foi ela. Ela dizia Foi Deus, para se desculpar..."

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