Factos e fantasmas da nossa história
O título do documentário de Ariel de Bigault, Fantasmas do Império, expõe uma sugestiva dialética. Trata-se de perscrutar a história do cinema português, propondo um inventário crítico das formas, necessariamente diversas, de representação do colonialismo português; ao mesmo tempo, essa representação tão assombrada (por fantasmas, precisamente) remete-nos para factos muito concretos, não poucas vezes perturbantes, que espelham as convulsões da nossa história enquanto povo e nação.
Daí o facto surpreendente - e, insisto, perturbante - de vários testemunhos recolhidos confluírem num mesmo sentido. Em boa verdade, numa mesma palavra: silêncio. Dito de outro modo: o capítulo final do império lusitano (entenda-se: a Guerra Colonial) foi também vivido através do silenciamento de factos e traumas. Quando? Antes do 25 de abril de 1974, por certo, mas também depois.
Este é, assim, um filme capaz de nos ajudar a contrariar os maniqueísmos que o silêncio sempre alimentou (tal como a histeria mediática, importa acrescentar). Como recorda José Manuel Costa, diretor da Cinemateca Portuguesa, os rótulos banalmente ideológicos são insuficientes: "O cinema colonial é sempre um confronto de dois olhares. Mesmo que um dos olhares esteja completamente subjugado, ele está lá. Há um momento em que alguém foi apanhado pela câmara, olhou para a câmara, e de repente, num simples olhar, transmite um mundo que, aparentemente, na retórica do filme está completamente esquecido."
A presença da Cinemateca é, aqui, especialmente importante, uma vez que muitos extratos provenientes de produções do aparelho de propaganda do Estado Novo existem graças ao labor exemplar da instituição e, mais especificamente, do seu Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM). Através de uma montagem de sóbrio dinamismo, vemos esses extratos em ziguezague com fragmentos de filmes que nasceram da vontade de repensar a representação colonial de Portugal e, nessa medida, as representações do colonialismo português.
Daí a importância dos depoimentos de alguns dos realizadores desses filmes - são eles Fernando Matos Silva, João Botelho, Margarida Cardoso, Hugo Vieira da Silva, Ivo M. Ferreira, Manuel Faria de Almeida e Joaquim Lopes Barbosa -, a par das palavras da investigadora e ensaísta Maria do Carmo Piçarra. São vozes que se cruzam e, de alguma maneira, completam, numa dinâmica de "reportagem" conduzida por dois atores: Ângelo Torres, são-tomense, e Orlando Sérgio, angolano.
Creio que o efeito mais forte (entenda-se: mais pedagógico) de Fantasmas do Império resulta de todas essas componentes surgirem organizadas, não através de uma voz off "sobreposta" a uma colagem acelerada de imagens, mas sim de uma metodologia capaz de suscitar novos olhares sobre as imagens que são mostradas. Afinal de contas, a história coletiva é um caudal infinito de olhares. Como diz, a certa altura, Margarida Cardoso, podemos "ver o passado no presente e ver o presente no passado".
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