"Estudar enologia em França deu-me a visão para transformar a Real Companhia Velha"

Brunch com o presidente da Real Companhia Velha, Pedro Silva Reis.
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Cruza-se a ponte no Pinhão, no sentido sul, e logo à esquerda está a entrada da Quinta das Carvalhas, mais de 100 hectares de vinha, com castas amplamente conhecidas, como Touriga Nacional, Touriga Franca ou Sousão, mas também outras, quase extintas, como é o caso da Cornifesto, nome curioso de uma das castas mais antigas no Douro. Pedro Silva Reis, presidente da Real Companhia Velha, está à espera junto da loja, onde existe uma agradável sala de provas, com móveis de madeira e cadeirões de couro. Tudo ali, mesmo na margem do Douro, pois esta quinta é das poucas que descem até ao rio, sem ferrovia ou estrada pelo meio. Uma quinta que pertence à família há décadas e faz parte das memórias de Pedro, cujo pai já estava no negócio do vinho antes de se tornar dono daquela que é a mais antiga empresa portuguesa, fundada no tempo em que o Marquês de Pombal era o braço-direito de D. José.

"Tenho muitas memórias de infância ligadas ao Douro e a esta quinta. Aqui vínhamos para a Páscoa (o que acontece até aos dias de hoje) e aqui passávamos grande parte das férias grandes. O verão começava aqui, agosto era passado na praia, e regressávamos à Quinta das Carvalhas e ao Douro em setembro, onde ficávamos até começarem as aulas", diz este portuense nascido em 1961, um ano após a família comprar a Real Companhia Velha.

Estamos agora no cimo da colina. Ali se encontra a Casa Redonda, a guest house da Quinta das Carvalhas, que em breve se perspetiva que abra ao público. Na zona exterior, algumas cadeiras em madeira estão espalhadas para cada um escolher qual a paisagem que quer ver, sempre com o Douro a serpentear lá em baixo. A decoração da casa relembra que já serviu de apoio de caça e fico surpreendido ao saber que na mata que existe acima dos socalcos plantados com vinha não faltam javalis e raposas. Para se chegar ao topo, o Jeep conduzido pelo meu anfitrião teve de se mostrar à altura dos pergaminhos, afinal esta é a marca americana que nasceu na Segunda Guerra Mundial e depois, com veículos civis, fez surgir o conceito de jipe.

Estamos a beber um Carvalhas branco, aqui da Quinta, e na mesa trazida para junto das cadeiras de observação está uma tábua de queijos e enchidos. Pedro vive no Porto, mas admite que o Douro é muito chamativo e que o gosto em vir tanto é pessoal, como profissional; e que o pai sabia o que fazia quando o trazia nas férias, procurando que essa ligação crescesse o mais naturalmente possível. "Era para nós nos afeiçoarmos ao território e termos essas memórias, e, de facto, não é difícil apaixonarmo-nos pelo Douro. Naturalmente que o Douro é muito diferente hoje do era naquela altura, basta dizer-lhe que quando era criança demorávamos quase seis horas a cá chegar, do Porto ao Pinhão, e hoje demora 1 hora e 15 minutos", sublinha.

Peço a Pedro que fale um pouco do pai, Manuel da Silva Reis, que, apesar de oriundo de uma família que já no século XIX estava ligada ao vinho, é o protagonista da história de sucesso que inclui como auge a compra e relançamento da Real Companhia Velha. "Começa a sua carreira muito jovem, desde logo a trabalhar em empresas de vinhos e depois estabelece-se como comerciante, até que adquire a sua primeira empresa - Miguel Sousa Guedes e Filhos -, que era uma empresa familiar de referência. Era uma empresa muito bem estabelecida, com grandes instalações e stocks de vinho do Porto, o que lhe vai, digamos, dar início a uma carreira empresarial no setor. Em 1973 e pela primeira vez na história do setor, um português torna-se o maior exportador de vinho do Porto", relembra Pedro, com óbvio orgulho, tanto filial como pátrio. Até então, sempre tinham sido empresas inglesas a liderar, pela ancestral relação entre o Douro e o Reino Unido, com o vinho do Porto a ser obrigatório nos banquetes reais.

Esse momento histórico de triunfo, em que tinham destronado a Sandeman, diz o presidente da Real Companhia Velha, "foi sol de pouca dura", pela instabilidade que se seguiu ao 25 de Abril. E explica: "em 1975 dá-se a intervenção da empresa, em pleno PREC, e esse caminho é interrompido. É retomado depois, em meados dos Anos 80, mas já com muito sacrifício, porque o setor tinha mudado e os mercados onde atuávamos e tínhamos predominância deixaram de ter rentabilidade, tendo o negócio de ser repensado. Mais à frente, em 1997, que é quando o meu pai me vai já passando os comandos da empresa, eu inicio um plano de reestruturação que passa por reduzir a atividade de vinho do Porto. É uma decisão já minha. Uma redução naturalmente concertada com o nosso conselho de administração, com o resto da família, em que adaptámos a atividade de vinho do Porto àquilo que entendíamos que era a parte sã do negócio, saindo do segmento que não tinha rentabilidade. Com a redução de stock pudemos financiar a reconversão e a expansão de vinha e o desenvolvimento dos vinhos de autor".

Pedro desmente a ideia que por vezes surge de que a empresa chegou a voltar costas ao vinho do Porto. "O vinho do Porto nunca deixou de ter importância no nosso negócio. Embora pudesse ser essa a imagem que passava, nunca foi o caso. Apenas recuámos para reorganizar a estratégia. Entretanto, o novo modelo de negócio provou estar certo, começou a desenvolver-se e hoje o vinho do Porto volta a ter o seu protagonismo na empresa. Isto acontece de uma forma muito equilibrada, na medida em que representa 50% do volume e 56% do valor. As categorias especiais de vinho do Porto estão a ter um crescimento notável em todo o setor e, em particular, na nossa empresa, sobretudo porque atuamos em mercados de boa rentabilidade, onde essas categorias têm um peso importante".

Com 40% de produção para consumo em Portugal e 60% para a exportação, a Real Companhia Velha tem, no caso do vinho do Porto, a Alemanha como maior mercado, seguida dos Estados Unidos. Também a Bélgica, a Espanha, os Países Baixos, a Dinamarca, o México e o Canadá são países de destino.

Seja ao serviço da Real Companhia Velha ou numa experiência associativa na direção da Associação Industrial Portuense (o mais jovem empresário nessa situação em século e meio de existência da AIP), Pedro tem vasto currículo como viajante e, de repente, damos por nós a falar do processo de democratização de Taiwan e da devolução de Macau à China - pois uma das tarefas que teve na AIP foi coordenar o escritório de representação nessas duas parcelas do mundo sínico - e também das transformações na Europa de Leste com a queda do Muro de Berlim. Partilho um pouco da minha experiência como repórter, enquanto bebo um segundo copo de branco, e o meu anfitrião retribui com a sua análise política, mas também sociocultural. Fico a saber que no Leste, num primeiro momento foi mais fácil vender aos checos, que gostam de cerveja, mas têm uma cultura do vinho por causa da Morávia, do que aos polacos, que no tempo comunista estavam rendidos ao vodka, mas cujas novas gerações, não só são europeístas como perceberam o valor do bom vinho. É capaz, suspeito eu, de haver aqui um papel daquele que é, "com muita honra" o Cônsul Honorário da Polónia no Porto desde 2014. Já sobre a evolução da China, quando refiro que Xi Jinping publicou um artigo de opinião no DN aquando da visita em 2018, que falava de Freixo-de-Espada-à-Cinta como o extremo ocidental da Rota da Seda, Pedro mostra-me uma foto sua a cumprimentar o presidente chinês antes do jantar oficial oferecido por Marcelo Rebelo de Sousa no palácio da Ajuda.

Se as viagens fazem parte da rotina de um empresário dos vinhos, também a primeira experiência de vida no estrangeiro, em 1979, em França, teve que ver já com a preparação para um dia assumir a liderança da Real Companhia Velha.

"Talvez como jovem tivesse uma apetência para ir para fora, ver mundo. Portugal vivia um período também conturbado, o ensino estava muito afetado por toda a bagunça vinda ainda do PREC, portanto, surgiu a oportunidade. Lembro-me que tinha visto o curso de Enologia em França e tínhamos tido um colaborador que tinha feito esse curso, o que me entusiasmou. Acabou por ser relativamente fácil convencer o meu pai a ir para Bordéus cursar Enologia. Estava pronto para ir logo em 1978, mas só fazia 18 anos depois do início das aulas, o que não me permitia entrar numa universidade francesa. Tive, por isso, um ano a marcar passo, mas dediquei-me a melhorar o francês e a estagiar na empresa. Foi ótimo", conta, enquanto volta também a encher o copo. Insisto na experiência em Bordéus e pergunto se em França se aprende mesmo muito sobre vinhos, tal é a fama: "Muito, sobretudo porque não havia Enologia em Portugal naquela altura. Tínhamos escolas agrícolas, mas curso de Enologia propriamente não havia nenhum, pelo que foi um abrir de olhos. Regressado, não tive a vida facilitada no que toca à implementação das várias ideias que trouxe comigo. Não consegui materializa-las de imediato porque vivíamos uma realidade de adegas industriais e dedicadas à produção de vinho do Porto, com equipamentos de larga escala.... Deu-me, contudo, a visão para, anos mais tarde, conseguir implementar novos procedimentos e desenvolver projetos vínicos de boutique. Andei ali uns anos até vingar e criar a Fine Wine Division, implementada em 1996". Foi com o Quinta de Cidrô Chardonnay que obteve o primeiro sucesso comercial e marca de afirmação do novo conceito. Veio depois a aposta nas vinhas velhas e a retoma da pisa a pé.

A Fine Wine Division é uma aposta clara na alta gama, pergunto. "Sem dúvida. Depois de fazermos essa incursão nos vinhos de mesa, importava fazer um upgrade qualitativo generalizado e mudar a mentalidade da empresa, de um projeto volumista para uma empresa mais de nicho e de vinhos de boutique e de alta qualidade. Na realidade, aquilo que poderá ser fácil para um pequeno produtor ao começar de novo, é extremamente difícil para uma empresa grande e com muita tradição. Então, a solução foi criar um núcleo dentro da empresa que tivesse autonomia para trabalhar como se fosse um pequeno produtor. Pensar como pequeno produtor e fazer grandes vinhos".

Estamos a falar não só de uma grande empresa, mas também da tal empresa mais antiga de Portugal, não só nos vinhos, mas em geral. Tudo com origem num Alvará Régio de 1756. O nome oficial é Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro - Real Companhia Velha S.A., uma homenagem às origens, sem perder a noção de marketing, como explica: "A marca e o estabelecimento comercial era Real Companhia Velha. Só que em determinado momento os organismos oficiais deixaram de reconhecer o nome de estabelecimento comercial como figura jurídica. E então iam obrigar-nos a pôr nos rótulos Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro. Ora, para o consumidor, isso torna-se impraticável. Ninguém consegue decorar um nome tão longo. A solução foi pegar no nome original, porque dizem colegas seus ou até historiadores menos avisados, que a Real Companhia Velha é a sucessora da Companhia Geral... Errado. É a mesma empresa, porque a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro nunca deixou de existir. Nunca abandonar esta designação foi uma teimosia do meu pai, que sempre respeitei. Tivemos duas hipóteses: ou deixávamos de usar Companhia Geral... e passávamos a chamar-nos simplesmente Real Companhia Velha, que não era a mesma coisa, e simplificávamos a nossa vida comercial, ou então encontrávamos um subterfúgio negociado com o Instituto de Vinho do Douro e Porto. Ou seja, passávamos a ser Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro - Real Companhia Velha S.A. e deixam-nos usar só o Real Companhia Velha. Foi esse o compromisso, para respeitar e não deixar cair o nome com 267 anos".

São cinco as quintas da Real Companhia Velha (Carvalhas, Aciprestes, Cidrô, Granja e Síbio), mas é em Vila Nova de Gaia, na Rua Serpa Pinto, que têm, além de um centro de visitas, o museu, tudo nas antigas instalações da Miguel Sousa Guedes, local que chegou a ser sede da Real Companhia Velha, entre 1960 e 1973. Numa empresa tão antiga - com um século de avanço ao DN que se orgulha de ter quase 159 anos - acumulam-se as histórias curiosas e Pedro faz questão de contar uma, bem importante: "A empresa, quando foi fundada, tinha como marca comercial Real Companhia dos Vinhos do Porto. Por conseguinte, comercialmente, a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro era conhecida como Real Companhia dos Vinhos do Porto. Daí, em Inglaterra, sermos conhecidos como Royal Oporto Wine Company e nossa marca internacional ser Royal Oporto. É então de Real Companhia dos Vinhos do Porto que derivou para Real Companhia Velha como um cognome. Isto porque, em 1889, foi estabelecida, no reinado de D. Luís, outra companhia majestática, a Real Companhia Vinícola do Norte de Portugal, conhecida como Real Vinícola. Com a criação de uma segunda companhia real estava estabelecida a confusão. Na gíria de quem andava para cima e para baixo com os carros de boi a transportar vinho, ao perguntarem para onde iam e o destino era a Real Companhia, surgia a dúvida: para a nova ou para a velha. Foi daí que surgiu o cognome Real Companhia Velha, por haver uma mais recente".

A ideia para este brunch surgiu de uma ida minha, já agendada, ao Douro, a Alijó, com possibilidade assim de dar um salto ao Pinhão. E também de uma certa consciência pesada de ter faltado à última da hora em Lisboa a uma prova em que a Real Companhia Velha apresentava o seu Quinta das Carvalhas Porto Tawny 50 anos, uma criação que junta Pedro e o seu filho mais novo, Tiago, há um ano na empresa. Ora, entre novas criações e vinhos mais antigos, quais são os nomes que sintetizam a diversidade da Real Companhia Velha, questiono. "Porca de Murça é importante porque é a marca de maior volume, mas também o Evel, como uma referência do Douro e associado à empresa como marca histórica, ao qual também se associa a marca Grandjó. São as três marcas históricas. E depois temos, digamos, a nova geração, na qual temos os Carvalhas, os vinhos da Quinta das Carvalhas, como os topos de gama, Quinta de Cidrô e Quinta dos Aciprestes", diz Pedro. E acrescenta: "no vinho do Porto é a marca Real Companhia Velha e, ultimamente, também temos vindo a desenvolver a marca de vinho do Porto Quinta das Carvalhas. É uma marca que estamos a querer projetar, no sentido de ser um vinho do Porto de origem. Ou seja, enquanto o vinho do Porto da Real Companhia Velha é um vinho que resulta de várias quintas, várias parcelas, de determinadas localizações, o vinho do Porto Quinta das Carvalhas tem origem na propriedade que lhe dá nome, sendo ela tão especial: margem própria, sobranceira ao Douro, começa ao nível do rio e vem ao ponto mais alto. Estamos aqui a quinhentos metros de altitude, com este sentido do que é o Douro. Em dias de boa visibilidade, temos praticamente 50 quilómetros de visibilidade. Portanto, Serra do Marão, Sabrosa, Favaios, uma pontinha de Alijó, Valença do Douro, Tabuaço, lá para o fundo Armamar. Vê-se o Douro de um só relance. Não é exagerado dizer que é o melhor posto de observação do Douro, porque não conheço outro assim. E as referências de outras pessoas da região é que é o local, em termos de vistas, mais privilegiado e bem no coração da região".

A demora a chegar, por causa do trânsito na ponte que cruza o Douro no Pinhão, e a boa conversa que se foi arrastando, ofereceu-me uma oportunidade inesperada: ver o pôr do Sol no Douro. Um brinde à beleza desta paisagem que o homem trabalhou mas que tem também o dom da natureza. O Alto Douro Vinhateiro merece sem dúvida o título de património da humanidade que a UNESCO lhe atribuiu em 2001. E beber um bom vinho enquanto se aprecia a vista é um enorme prazer.

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