Estreias: Godzilla II: um filme pequeno para um monstro colossal

<em>Godzilla II: Rei dos Monstros</em> segue-se ao reboot de Gareth Edwards, que já de si não foi recebido com festejos, e parece disposto a transformar a mitologia em espetáculo ruidoso de videojogo. Estreia-se nesta quinta-feira.
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Godzilla ou, no original japonês, Gojira, regressou às grandes telas em 2014, quando se assinalavam os 60 anos do primeiro filme, intitulado O Monstro do Oceano Pacífico. Esse relançamento, assinado por Gareth Edwards (que depois realizou Rogue One: Uma História de Star Wars), deixou a crítica na altura pouco entusiasmada, em parte argumentando que o realizador não soube muito bem o que fazer com o elenco que tinha em mãos, composto por Bryan Cranston, Juliette Binoche e Sally Hawkins, entre outros.

Ainda assim, veja-se a contradição, falamos de um filme em que o fator humano se posiciona acima do conceito de luta de titãs da saga japonesa. Ou seja, é sobretudo através da experiência do jovem militar interpretado por Aaron Taylor-Johnson que vislumbramos o mistério que é estar na presença dos monstros - e em especial do mais majestoso de todos eles.

Com a chegada às salas de Godzilla II: Rei dos Monstros, dirigido por Michael Dougherty, o referido calcanhar de Aquiles da realização de Edwards acaba por parecer um mal menor ou até soar a elogio. Desde logo porque o que no filme de 2014 era um respeitoso trabalho de escrita, no sentido de se adiar a "ópera" do duelo de monstros (tão grandiosamente revestida pela partitura de Alexandre Desplat), aqui é uma mixórdia de ação titânica, desalmada e barulhenta, que não sabe quando deve fazer uma pausa para o próprio espectador descansar os olhos e os ouvidos...

Mais do que uma sequela, o novo filme quer ser um pomposo cortejo de referências do universo Godzilla, fazendo confluir algumas das criaturas fantásticas do kaiju (folclore de monstros cinematográficos japoneses), sem estabelecer propriamente uma ligação entre este e o filme anterior - à exceção das presenças de Sally Hawkins e Ken Watanabe, nos papéis dos especialistas em bestas ancestrais. Desta vez é uma família afetada pela catástrofe de 2014 que surge à cabeça da suposta narrativa em marcha: o casal interpretado por Vera Farmiga e Kyle Chandler perdeu um dos filhos nesse evento trágico e agora vive cada um para seu lado.

Ela, que será a peça principal do enredo, trabalha para a Monarch (a empresa que atua na defesa de Godzilla e dos seus semelhantes), estando a aperfeiçoar uma máquina de bioacústica para interagir com as criaturas, de modo a evitar novas hecatombes. Mas no momento em que o seu destino e o da filha (Millie Bobby Brown) se cruzam com o de um eco-terrorista (Charles Dance), a agulha muda de lado... Toda uma tese sobre a "ordem natural" se agiganta na mesma medida do que vemos no ecrã. E o problema é que essa tese está completamente minada por motivos sentimentais, o que deixa à vista uma das asneiras óbvias do argumento, só por si, oco.

Entretanto, a casta de monstros vai despertando para o inevitável confronto. Contam-se Rodan, meio dragão meio pterossauro, Mothra, uma colossal traça luminosa, e Ghidora, o monstro de três cabeças. Um catálogo mais do que suficiente para fazer o filme rodar em seco dentro de uma geografia diversa (passa-se da China para Colorado, Bermudas, depois México, Antártica...), sempre com o ecrã oscilante entre tons de azul e alaranjado. Mais ou menos como um videojogo em que nunca se vê a luz natural do dia - e tal como um videojogo não precisa de diálogos, também as tentativas embaraçosas de colocar as personagens em comunicação é aqui um triste espetáculo de comédia involuntária. Digamos, para simplificar, que não é possível forjar a relação entre os bichos de grande escala e os peões humanos.

Embalado como um perfeito produto anónimo de estúdio, Godzilla II: Rei dos Monstros tem a honra de ser o primeiro mal-amanhado blockbuster do verão que se avizinha.

Quando Godzilla era uma metáfora

Aterrar no filme de Michael Dougherty sem uma pequena ideia do simbolismo de Godzilla pode ser uma experiência ainda mais vazia. Por isso, vale a pena ir lá atrás e recordar que na origem desta mítica criatura esteve o ímpeto japonês de responder à fatalidade histórica dos bombardeamentos atómicos dos Estados Unidos sobre Hiroxima e Nagasaki, em 1945, e dos continuados testes nucleares no Oceano Pacífico. Há mesmo a história do naufrágio de um navio de pesca japonês causado por esses testes, que é citado em O Monstro do Oceano Pacífico, de Ishiro Honda. Gojira surgia então como uma arma imaginária, uma força natural que limitava tais ações.

Chegados a Godzilla II: Rei dos Monstros, estamos já longe da metáfora da guerra (embora esse fantasma ainda paire), e sobretudo da candura primitiva da figura de borracha com um homem lá dentro... Nesse aspeto da "aura", note-se que o Godzilla de Gareth Edwards - que já beneficiava do grande poder da tecnologia digital - manteve um certo gosto retro, um certo grau de analógico, conferindo uma discreta nostalgia e reverência pela criatura lendária. Agora pela mão de Dougherty parece não restar quase nada dessa aura, ou sequer um genuíno fascínio por ela. É um monstro como outro qualquer.

Espere-se por Godzilla vs. Kong (a lançar em 2020) para saber se ainda existe cinema para lá de um ecrã de computador, ou se a tendência veio para ficar.

* Mau

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