Estreia. Cinema noir de saltos altos
A grande missão do cinema de Paul Feig tem sido destruir a ideia de que a comédia se define como território exclusivo dos homens. Mas cuidado com as palavras: dizer que a sua especialidade são as comédias com mulheres não é o mesmo que dizer "comédias femininas". Há um mundo a separar as duas coisas. E Feig não é dado a subtilezas. Por isso, as suas atrizes são sempre mulheres prontas para a ação e, mais do que servir um argumento, elas vestem-no a preceito. Veja-se Armadas e Perigosas (2013), Spy (2015) ou a recente versão feminista de Caça-Fantasmas (2016) - exemplos que bastam para se perceber do que estamos a falar. Em todos estes a comédia física é rainha. Curiosamente, o que chega agora às nossas salas caracteriza-se como um objeto mais refinado... Não necessariamente melhor, mas refinado.
Um Pequeno Favor junta Anna Kendrick e Blake Lively num registo que começa por nos adoçar o sorriso (literalmente, porque a personagem de Kendrick tem um blogue de culinária), e depois resvala para o domínio do thriller. Dito de outra maneira, é o tom humorístico que se instala quando as duas se conhecem à porta do infantário dos filhos: Kendrick é uma criatura muito inocente, veste-se como uma menininha, e Lively é o mulherão que traja smoking e transpira erotismo. Quais as probabilidades de se tornarem amigas? Nenhumas; e a piada está aí. Até ao dia em que a personagem de Lively, depois de pedir um "pequeno favor" à nova amiga - trazer o filho dela quando for buscar o seu à escola -, desaparece do mapa. E aqui os instintos detetivescos de Kendrick despertam, indo ao fundo de um mistério com muito de obscuro... e ares de Gone Girl.
Paul Feig faz um exercício de funambulismo, tentando não anular a pincelada humorística com a dinâmica do thriller, e vice-versa, mas há algo que se perde nesta gestão. Poderíamos dizer que Um Pequeno Favor é uma comédia negra, mas no fim de contas não se adequa assim tanto. É como se esta história (adaptada de um romance de Darcey Bell), que nas suas linhas gerais é mais a cara ao cinema de François Ozon, ficasse desamparada dentro do universo de Feig, pela simples razão de que este não tem uma estrutura psicológica para aguentar a sugestão noir. E isso reflete-se numa ligeira falta de jeito para manter o enigma à flor da pele.
Contudo, não se deite fora o bebé com a água do banho. Apesar das fragilidades de quem saiu da sua zona de conforto, o realizador americano controla bem o nível de arrojo e sofisticação narrativa, arrancando de Anna Kendrick, e sobretudo de Blake Lively, personagens muito dignas do seu catálogo de atrizes. Aliás, para que conste, o homem desta história - marido da desaparecida - é definitivamente o elo mais fraco...
E o que dizer da banda sonora? Assim que se entra na vivenda de Lively (onde a maior parte da ação tem lugar), a playlist francesa que se ouve, de Françoise Hardy a Serge Gainsbourg, funciona como um autêntico vórtice, constantemente a puxar o espectador para a atmosfera sexy & chic que está acima de tudo o resto. Feig terá pensado que, para fazer um noir, ao menos que seja em grande estilo. E isso é com certeza o que não lhe falta.
** (Com interesse)