Uma das longas-metragens mais curiosas do Verão - Sessão de Apresentação da Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030 - viu nesta semana a estreia oficial da sua sequela - Sessão de Balanço da Consulta Pública da Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030 - disponível em pelo menos uma popular plataforma de streaming (a conta da República Portuguesa no YouTube). A 14 de Outubro segue-se a terceira e última parte da trilogia, a Apresentação Pública do Plano de Recuperação, a estrear perante o prestigiado júri de cinéfilos da Comissão Europeia..O auteur António Costa Silva subiu ao palco na Fundação Calouste Gulbenkian ciente dos perigos e obstáculos de qualquer obra do meio numa trilogia, e optou por uma abordagem pouco arriscada, reciclando alguns pontos do primeiro êxito (as mesmas citações de T. S. Eliot e Acemoglu; a mesma proclamação de derrota dos "excessos do liberalismo" repetida quase ipsis verbis), ao mesmo tempo que mostrou uma generosa abertura ao diálogo com a crítica construtiva, elogiando profusamente os mil cento e cinquenta e três contributos criativos que recebeu na segunda fase do processo, vindos de todos os "quadrantes" da "sociedade civil". Dadas as ligeiras, mas evidentes, alterações de ênfase da sessão de Julho para esta, pode concluir-se que o compromisso com a visão estratégica é consensual e que os vários quadrantes da sociedade civil se encontram empenhadíssimos em gastar os 57 mil milhões de euros do Plano de Recuperação da forma mais estratégica possível. "No documento original", repetiu Costa Silva por três ou quatro vezes, "esta área não teve o enfoque devido". Muitos dos contributos trataram de desviar o enfoque para o sítio certo - com o sector do Turismo a salientar que o sector do Turismo é tremendamente estratégico, e autarquias diversas a lembrar que têm por lá algumas estradas para alcatroar estrategicamente. No geral, a longa-metragem manteve-se fiel aos princípios do original: uma síntese entre o memorando estratégico corporativo, o seminário de motivação, a encíclica declamada no Concílio de Davos e a salada multidisciplinar das tech conferences, avidamente suplementada com o tipo de "curiosidades" históricas disponíveis em qualquer almanaque de cultura geral (a suposta "aposta" entre Ford e Edison, a paternidade célebre de Ada Lovelace, etc.), e com alguns electrizantes desvios poéticos ("o medo funciona nos mercados da angústia"). Inflexível na arte de generalizar sobre generalizações já bastante generalizadas, Costa Silva mobilizou os seus "nove eixos estratégicos" para mostrar o caminho. Apostar na diversidade, apostar na competitividade, apostar na sustentabilidade. Algumas coisas são "absolutamente fundamentais" ou, em alternativa, "absolutamente essenciais", como por exemplo "pôr as pessoas no centro", "erradicar a pobreza", "investir no conhecimento", e "prevenir a doença": sinais de uma visão estratégica revolucionária que se diferencia de todas aquelas visões estratégicas que recomendam pôr os rouxinóis no centro, criar mais indigentes, investir no analfabetismo e aumentar a percentagem de portugueses com sinusite ou cancro do esófago..A caminho do caminho para o futuro, Costa Silva faz um périplo virtuoso pelo jargão da especialidade, com várias referências inimpugnáveis a "modelos de governance", "marketing integrado", ou "potências médias de soft power". Todas estas expressões têm um significado, mas a sua principal função é servirem como signos flutuantes: existem para estarem ali e se alimentarem e reforçarem umas às outras, formando um sistema internamente coerente, funcionalmente opaco, mas totalmente auto-sustentável. Mais do que uma visão coerente do futuro, a sessão foi uma amplificação dos termos inerentes em qualquer perspectiva paroquial sobre o presente - o presente tal como existe na arena das visões estratégicas, das Ted Talks ou dos livros de aeroporto dos Yuval Hararis, dos Malcolm Gladwells ou dos Thomas Friedmans. Forneceu um catálogo de tópicos habituais (automação, inteligência artificial e blockchain foram todas mencionadas, tal como as redes 5G, que vão "mudar o paradigma da conectividade"), e um índice de curiosidades culturais descontextualizadas: o tipo de factóide isolado que produz uma reacção imediata ("isto é interessante!"), mas cujo "interesse" é suficientemente elástico para ilustrar, por ilusória osmose sintáctica, qualquer coisa que se queira dizer a seguir. Uma referência ao "gato de Schrödinger", martelada no meio da palestra, não iluminou rigorosamente nada sobre o que foi dito antes ou depois, mas foi certamente "interessante", pelo menos para quem não a conhecesse. Uma medida do genuíno "interesse" missionário que estas descargas de repertório parecem despertar em Costa Silva é o extraordinário número de vezes que ele qualificou algo como "extraordinário": "uma extraordinária expressão da filósofa Hannah Arendt", "a extraordinária escola renascentista de Luca Pacioli", "o verso extraordinário de T. S. Eliot", "o livro extraordinário de Daron Acemoglu", "uma das mais extraordinárias peças de teatro que foram escritas", a "formulação extraordinária do famoso epidemiologista", "a extraordinária história de ciência que se passou em Bletchley Park", o "extraordinário poeta persa Rumi". Mas não são só as referências culturais que são extraordinárias. Um mapa desenhado pela Universidade de Harvard? "Extraordinário." A resposta das empresas e universidades à pandemia? "Extraordinária." O último leilão de energia solar? "Extraordinário." Os portugueses? "Extraordinários." O planeta Terra? "Extraordinário." Há de facto qualquer coisa de "extraordinário" neste entusiasmo multidisciplinar de alguém que parece gostar tanto de se ouvir a relatar o seu panorâmico conhecimento em voz alta. Mais extraordinária ainda é a sua capacidade para responder a Fátima Campos Ferreira mesmo sem ela estar presente para fazer as perguntas. Todo o evento, aliás, foi uma espécie de forma platónica do Prós e Contras, uma redução do programa ao seu estado mais puro: uma sessão de "pensar o país" em tempo real, em que cada proclamação parecia especificamente concebida para entrar em diálogo com a apresentadora - com as suas pausas grávidas, as suas ênfases caóticas, a sua paixão pelas abstracções semipoéticas: "DouTOR... PORtugal... PortuGAL aINda é PossÍVEL?" Segundo a Visão Estratégica de Costa Silva, sim, Portugal ainda é possível, e tem tudo para ser extraordinário. Escreve de acordo com a antiga ortografia
Uma das longas-metragens mais curiosas do Verão - Sessão de Apresentação da Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030 - viu nesta semana a estreia oficial da sua sequela - Sessão de Balanço da Consulta Pública da Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030 - disponível em pelo menos uma popular plataforma de streaming (a conta da República Portuguesa no YouTube). A 14 de Outubro segue-se a terceira e última parte da trilogia, a Apresentação Pública do Plano de Recuperação, a estrear perante o prestigiado júri de cinéfilos da Comissão Europeia..O auteur António Costa Silva subiu ao palco na Fundação Calouste Gulbenkian ciente dos perigos e obstáculos de qualquer obra do meio numa trilogia, e optou por uma abordagem pouco arriscada, reciclando alguns pontos do primeiro êxito (as mesmas citações de T. S. Eliot e Acemoglu; a mesma proclamação de derrota dos "excessos do liberalismo" repetida quase ipsis verbis), ao mesmo tempo que mostrou uma generosa abertura ao diálogo com a crítica construtiva, elogiando profusamente os mil cento e cinquenta e três contributos criativos que recebeu na segunda fase do processo, vindos de todos os "quadrantes" da "sociedade civil". Dadas as ligeiras, mas evidentes, alterações de ênfase da sessão de Julho para esta, pode concluir-se que o compromisso com a visão estratégica é consensual e que os vários quadrantes da sociedade civil se encontram empenhadíssimos em gastar os 57 mil milhões de euros do Plano de Recuperação da forma mais estratégica possível. "No documento original", repetiu Costa Silva por três ou quatro vezes, "esta área não teve o enfoque devido". Muitos dos contributos trataram de desviar o enfoque para o sítio certo - com o sector do Turismo a salientar que o sector do Turismo é tremendamente estratégico, e autarquias diversas a lembrar que têm por lá algumas estradas para alcatroar estrategicamente. No geral, a longa-metragem manteve-se fiel aos princípios do original: uma síntese entre o memorando estratégico corporativo, o seminário de motivação, a encíclica declamada no Concílio de Davos e a salada multidisciplinar das tech conferences, avidamente suplementada com o tipo de "curiosidades" históricas disponíveis em qualquer almanaque de cultura geral (a suposta "aposta" entre Ford e Edison, a paternidade célebre de Ada Lovelace, etc.), e com alguns electrizantes desvios poéticos ("o medo funciona nos mercados da angústia"). Inflexível na arte de generalizar sobre generalizações já bastante generalizadas, Costa Silva mobilizou os seus "nove eixos estratégicos" para mostrar o caminho. Apostar na diversidade, apostar na competitividade, apostar na sustentabilidade. Algumas coisas são "absolutamente fundamentais" ou, em alternativa, "absolutamente essenciais", como por exemplo "pôr as pessoas no centro", "erradicar a pobreza", "investir no conhecimento", e "prevenir a doença": sinais de uma visão estratégica revolucionária que se diferencia de todas aquelas visões estratégicas que recomendam pôr os rouxinóis no centro, criar mais indigentes, investir no analfabetismo e aumentar a percentagem de portugueses com sinusite ou cancro do esófago..A caminho do caminho para o futuro, Costa Silva faz um périplo virtuoso pelo jargão da especialidade, com várias referências inimpugnáveis a "modelos de governance", "marketing integrado", ou "potências médias de soft power". Todas estas expressões têm um significado, mas a sua principal função é servirem como signos flutuantes: existem para estarem ali e se alimentarem e reforçarem umas às outras, formando um sistema internamente coerente, funcionalmente opaco, mas totalmente auto-sustentável. Mais do que uma visão coerente do futuro, a sessão foi uma amplificação dos termos inerentes em qualquer perspectiva paroquial sobre o presente - o presente tal como existe na arena das visões estratégicas, das Ted Talks ou dos livros de aeroporto dos Yuval Hararis, dos Malcolm Gladwells ou dos Thomas Friedmans. Forneceu um catálogo de tópicos habituais (automação, inteligência artificial e blockchain foram todas mencionadas, tal como as redes 5G, que vão "mudar o paradigma da conectividade"), e um índice de curiosidades culturais descontextualizadas: o tipo de factóide isolado que produz uma reacção imediata ("isto é interessante!"), mas cujo "interesse" é suficientemente elástico para ilustrar, por ilusória osmose sintáctica, qualquer coisa que se queira dizer a seguir. Uma referência ao "gato de Schrödinger", martelada no meio da palestra, não iluminou rigorosamente nada sobre o que foi dito antes ou depois, mas foi certamente "interessante", pelo menos para quem não a conhecesse. Uma medida do genuíno "interesse" missionário que estas descargas de repertório parecem despertar em Costa Silva é o extraordinário número de vezes que ele qualificou algo como "extraordinário": "uma extraordinária expressão da filósofa Hannah Arendt", "a extraordinária escola renascentista de Luca Pacioli", "o verso extraordinário de T. S. Eliot", "o livro extraordinário de Daron Acemoglu", "uma das mais extraordinárias peças de teatro que foram escritas", a "formulação extraordinária do famoso epidemiologista", "a extraordinária história de ciência que se passou em Bletchley Park", o "extraordinário poeta persa Rumi". Mas não são só as referências culturais que são extraordinárias. Um mapa desenhado pela Universidade de Harvard? "Extraordinário." A resposta das empresas e universidades à pandemia? "Extraordinária." O último leilão de energia solar? "Extraordinário." Os portugueses? "Extraordinários." O planeta Terra? "Extraordinário." Há de facto qualquer coisa de "extraordinário" neste entusiasmo multidisciplinar de alguém que parece gostar tanto de se ouvir a relatar o seu panorâmico conhecimento em voz alta. Mais extraordinária ainda é a sua capacidade para responder a Fátima Campos Ferreira mesmo sem ela estar presente para fazer as perguntas. Todo o evento, aliás, foi uma espécie de forma platónica do Prós e Contras, uma redução do programa ao seu estado mais puro: uma sessão de "pensar o país" em tempo real, em que cada proclamação parecia especificamente concebida para entrar em diálogo com a apresentadora - com as suas pausas grávidas, as suas ênfases caóticas, a sua paixão pelas abstracções semipoéticas: "DouTOR... PORtugal... PortuGAL aINda é PossÍVEL?" Segundo a Visão Estratégica de Costa Silva, sim, Portugal ainda é possível, e tem tudo para ser extraordinário. Escreve de acordo com a antiga ortografia