Este é um prémio justíssimo
A importância do Bob Dylan é incomensurável, não só na música americana do século XX mas até na cultura americana. O Dylan começa por ouvir o som, sobretudo do Woody Guthrie, que ele admirava imenso. Aliás, no seu primeiro disco, não tem canções originais, só tem canções de recolha, exceto duas às quais ele chama Song to Woody. E depois descobre o seu universo próprio e vai por aí com uma fulgurância extraordinária. De facto, ele é um desbravador, não direi tanto de géneros, mas de um género híbrido que se torna o seu. Houve uma altura em que as suas canções falaram muito do aspeto social, da política. Mas mesmo quando ele tinha esse lado do álbum The Times They Are a-Changin" [1964], tem um outro disco chamado Another Side of Bob Dylan [1964], um disco com poucas preocupações sociais.
Mas depois vai por outros caminhos, de pura criação, e de alucinação à volta, de um certo onirismo. Ele também é muito influenciado pela Beat Generation e há três discos dele que são absolutamente fundamentais nessa altura, Bringing It All Back Home [1965], Highway 61 Revisited [1965] e sobretudo o Blonde on Blonde [1966], que é uma obra-prima absoluta.
E sai também só do registo de cantor com guitarra para usar instrumentos elétricos. Aliás, causa um grande choque na altura [1965] porque foi ao New Port Folk Festival e cantou com músicos e com eletricidade ligada. Houve gente que gritava "Judas" porque ele tinha traído a folk. Que é uma coisa extraordinária! Qual é a liberdade que há nisto?
Realmente ele passou por todos esses caminhos. E nesse disco que referi há pouco, Highway 61 Revisited, está aquela que eu considero a sua melhor canção de sempre, Like a Rolling Stone, que é assim uma torrente de seis minutos de inspiração, com aquele refrão: "How does it feel?/ To be without a home/ Like a complete unknown, like a rolling stone." Aliás, o documentário que Martin Scorsese fez sobre Dylan deu-lhe o título No Direction Home, por causa desta canção. Tudo isto está no meu imaginário, no nosso imaginário, sobre os americanos, e não apenas nos países americanos ou anglo-saxónicos.
Bob Dylan era um cantor de voz estranha, mas que cantava muito bem. Ele ultimamente tem perdido algumas capacidades vocais, mas ele é, de facto, uma personagem única. Fiquei muito surpreso com o prémio, apesar de o nome dele já ter sido falado, mas nunca assim tão à frente, mas satisfeito até porque é um colega de ofício e premeia pela primeira vez essa conjugação das palavras com a música que é o objeto canção. Embora seja um bom músico, é o premiar acima de tudo da qualidade dos poemas e da inventividade das letras. Ele já tem um Óscar e um Príncipe das Astúrias no currículo, e agora esta distinção.
Esta atribuição do Prémio Nobel da Literatura a Bob Dylan não foi consensual, e ainda bem. O do Dario Fo [em 1997] também foi surpreendente e controverso, pois também premiava pela primeira vez outra arte, a arte dramatúrgica, com um tipo de teatro satírico e político. Já ouvi reações indignadas de escritores portugueses, e até de um músico, o que é extremamente ridículo. Este é um prémio justíssimo.