Estamos a matar a democracia?
Na Inglaterra, um dos países supostamente pioneiros da democracia, as mulheres só puderam votar de forma universal em 1928, depois da I Guerra Mundial. Mesmo assim o valor do voto não ficou igual para todos os cidadãos ingleses: uns quantos privilegiados, cerca de 7% do eleitorado, tinham direito a votar mais do que uma vez numa mesma eleição, sistema que só foi abandonado em 1948, depois da II Guerra Mundial, também feita, como a Grande Guerra, em nome da defesa da democracia no mundo.
Nos Estados Unidos as mulheres conquistaram o direito a votar em 1920, os homens nativos-americanos, conseguiram-no em 1924. Os cidadãos não-brancos só conseguiram ter direito a votar em 1965, ainda nem fez 60 anos, na mesma época em que milhares de jovens das tropas dos Estados Unidos morriam no Vietname para, diziam os seus governantes, "defenderem a democracia".
Mesmo hoje em dia, por causa de leis estaduais discriminatórias, estima-se que há cerca de 4 milhões de norte-americanos que não podem votar para a Câmara dos Representantes e para o Senado, o que é incrível e seria internacionalmente inaceitável se não se tratasse da maior potência mundial e da cultura mais influente (e brilhante) do planeta.
Dou o exemplo desses dois países por se comportarem como cavaleiros andantes do conceito que hoje temos de democracia, por serem estados vulgarmente apresentados como fazendo parte da vanguarda da defesa daquilo que se entende como "verdadeira democracia". Porém, quase todos os países ocidentais que há mais de um século se dizem democráticos só poderiam, na verdade, afirmar isso com rigor há relativamente poucos anos. Muitos deles, na verdade, nem aplicam na realidade aquilo que proclamam na teoria ou exigem para os outros países não ocidentais.
Quer um exemplo?...
Uma das bases da democracia, como sabe, é a separação de poderes - ensinaram-nos até na escola a definição criada por Montesquieu, no século XVIII, para, desde pequeninos, percebermos como a democracia deve funcionar.
Essa separação de poderes asseguraria, por exemplo, que nenhum político, nenhum governante, poderia interferir no trabalho da Justiça, dos tribunais, para garantir a sua independência e a lisura dos seus processos.
Pois na Inglaterra e nos Estados Unidos, com a colaboração da democrática Suécia, os tais paladinos da democracia no mundo, temos desde 2010, na Justiça, o caso de Julian Assange, um jornalista que, na prática, está preso desde 2012 (se contarmos com o tempo em que se confinou, em refúgio, na Embaixada do Equador) e que já foi acusado de tudo: desde estupro (acusação depois retirada e que só serviu para o deter) a espionagem. Ele divulgou documentos e imagens de comportamentos de tropas norte-americanas no Iraque e no Afeganistão violadores dos Direitos Humanos. Por isso, os Estados Unidos exigem a sua extradição para o poderem condenar a qualquer coisa como 30 anos de cadeia. A manipulação política da Justiça britânica, com avanços e recuos ao longo de 12 anos, parece estar prestes a conseguir, finalmente, corresponder ao pedido norte-americano.
No Brasil tivemos o caso de Lula da Silva, que foi preso e condenado por supostamente ter aceitado uma casa como pagamento de um favor político. Até eu achei que, de facto, o herói dos trabalhadores brasileiros se deixara corromper. Afinal a divulgação de escutas posteriores veio demonstrar que a Justiça brasileira, liderada por Sérgio Moro, montou uma falácia jurídica com motivações políticas para impedir a reeleição de Lula da Silva e que, no fundamental, era tudo mentira.
Agora, em Espanha, o antigo líder do Podemos, Pablo Iglesias, mostra também escutas que parecem comprovar que a policia, guiada politicamente, combinou com jornalistas a invenção de uma notícia televisiva, passada pouco tempo antes de umas eleições, dizendo que o homem tinha recebido um suborno pago pela Venezuela.
Imagino que, em Portugal, com tanto caso estranho, arrastado e intempestivo, haja quem comece a achar que a Justiça não está imune a manipulações deste tipo - e se esta ideia pega, as consequências serão mais graves para o país do que a lentidão e as contradições dos nossos procuradores, juízes e polícias.
O meu ponto, suscitado por este tipo de notícias, cada vez mais frequente, é este: quando as populações das supostas democracias deixarem de acreditar na honestidade da Justiça, se acharem que ela é dirigida pelos bastidores da política, que não é independente, nesse dia as democracias possíveis que vamos tendo deixam de estar apenas doentes e, simplesmente, morrem, por vontade popular.
Jornalista