Estado Livre de Jones: a América num episódio esquecido
Poucos conhecerão o nome de Newton Knight (1837-1922), agricultor sulista que durante a Guerra Civil Americana liderou uma revolta contra a Confederação, declarando a independência do Condado de Jones, no Mississippi, face aos restantes Estados Confederados. É sobre esse breve capítulo da história americana, ao mesmo tempo cativante e esquecido, que Estado Livre de Jones, filme realizado por Gary Ross (Pleasantville - A Viagem ao Passado, The Hunger Games...), se debruça, estreando-se, não por acaso, numa altura de encruzilhada política nos Estados Unidos, e retomando o debate racial, a poucos meses das eleições presidenciais. Noutro sentido, surge também como uma surpresa, no início deste verão cinematográfico, temporada geralmente pouco ousada na distribuição de conteúdos orientados para a reflexão histórica. E a matéria é aqui dada quase com a intenção de substituir um manual...
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Foi na primavera de 1864 que Newton Knight, juntamente com desertores da guerra (tal como ele), escravos e sulistas empobrecidos pela exploração dos soldados confederados, ergueu a bandeira americana sobre o tribunal do condado, em Ellisville, instituindo o Free State of Jones.
Antes disso, e na composição do ator oscarizado Matthew McConaughey, seguimos o trajeto deste homem, na defesa acérrima dos seus conterrâneos, que foi fermentando sentimentos violentos, e converteu-se ele próprio num alvo do exército. Refugiado num pântano com escravos foragidos, trava uma amizade decisiva com Moses (Mahershala Ali), e apaixona-se por Rachel (Gugu Mbatha-Raw Knight), uma escrava que já tinha sido enviada a sua casa, em auxílio do filho doente.
Mensagem política
O destino volta então a reuni-los com a força da própria causa, que não estará encerrada no simbólico episódio da bandeira, e que dará origem a uma relação mais íntima. O filho desta união estabelece, por fim, a ponte com o século XX, uma situação em tribunal que vai intercalando - a princípio com alguma estranheza - a narrativa central, com a de um descendente de Knight a ser julgado, no estado do Mississippi, pela sua herança racial, que o impede de se casar com uma mulher branca (embora, fisicamente, ele também o seja). Eis a mensagem política de Gary Ross bem patente nesta necessidade de relacionar dois momentos muito distintos.
Efetivamente, três, porque Estado Livre de Jones, no arco que faz entre 1862 e 1876, sobrepondo o caso do tribunal, divide-se em três partes: a Guerra Civil, o período da Reconstrução (que se seguiu ao fim da guerra, em 1865), e o movimento dos direitos civis, em meados do século XX. Um didático e elaborado desenho temporal, a privilegiar a pedagogia, e secundarizando os aspetos mais cinematográficos do épico.
Newton Knight é uma controversa figura histórica, mas nem por isso nos apercebemos desse debate interno dos estudiosos, interessando ao realizador um olhar sobre a personagem o menos ambígua possível. Talvez por isso não seja Knight que confere uma ótica exclusiva ao filme. Aquilo que, à partida, seria um biopic, acaba por se lançar num desenvolvimento bastante mais complexo do que a figura retratada.
Há um rigoroso tratamento dos factos integrais que orientam a ficção, de modo a concretizar uma vertente informativa que raramente vemos tão entalhada num drama. Mas esse olhar sobre os eventos heroicos é igualmente, como já se constatou, uma narrativa focada na libertação racial, tema tão caro a qualquer americano, que procura aqui deixar bem claras as noções ideológicas.
Na base do trabalho de Ross esteve, por isso, um verdadeiro cuidado documental, que o levou a rodear-se dos melhores especialistas, entre os quais Eric Foner, da Universidade Columbia, com um estudo fundamental sobre o período da Reconstrução, e Martha Hodes, da Universidade de Nova Iorque, com uma investigação premiada sobre a sexualidade interracial sulista no século XIX. E a verdade é que este zelo, em termos formais, acaba por funcionar como um exaustivo mecanismo de contextualização, dando azo à utilização de legendas explicativas para uma série de acontecimentos que deveriam justificar-se apenas pela leitura das imagens. É, afinal, isso que faz o cinema.