"Esta geração tem mais consciência dos direitos para a sua saúde"
Horas extra muito além das 150 anuais que diz a lei; escalas de urgência reduzidas a internos; falta de tempo deles para estudar e dos especialistas para os ensinar; remunerações baixas. Estas são as principais queixas dos médicos que fazem a especialidade: os internos. Primeiro, foram os de Ginecologia-obstetrícia a escrever à ministra da Saúde, depois os de Medicina Interna. Marta Temido não respondeu, resta-lhes a Ordem dos Médicos, que também escreveu à ministra.
As horas extra não são uma singularidade dos clínicos de Medicina Interna e de Ginecologia-obstetrícia, mas serão as especialidades mais afetadas, segundo os médicos e os dirigentes da classe.
Tiago Valente, 29 anos, está no 5.º ano de Medicina Interna, no Centro Hospitalar do Baixo Vouga (Aveiro ). Fez 250 horas extra desde o início do ano e continua a fazer, apesar de ter informado a administração hospitalar de que não estava disponível para mais trabalho suplementar. Faz duas a três Urgências a mais por mês. "Existem falhas na escala e por solidariedade para com os colegas que estão na Urgência, por amor à camisola, por querer ajudar o serviço, optamos por nos oferecer para fazer horas extra", justifica.
Legalmente, os internos deveriam fazer 40 horas semanais, entre as quais o máximo de um turno de 12 horas nos Serviços de Urgência (interna e externa), em unidades de cuidados intensivos e de cuidados intermédios ou similares. Só que faltam médicos especialistas e os que existem também estão sobrecarregados. Os internos acabam por fazer muito trabalho suplementar - além do tempo que nunca é contabilizado - e nas Urgências, onde o tempo para formação é escasso.
Tiago Valente dá o seu exemplo: ainda esta semana houve necessidade de fazer uma punção lombar, algo que um interno mais novo pode fazer com supervisão de outro com mais experiência. Só que apenas estavam o Tiago, como especialista (o que podem fazer no último ano de formação) e dois internos do 1.º ano. "Poderia ter pedido a um interno do 1. º ano para o fazer, só que, no meio de todo o trabalho, de tantos doentes, acabei por ser eu a fazer, foi mais rápido. Tenho pena, mas não dá". Estes formandos precisam de praticar técnicas, até porque lhes é exigido um número mínimo para as fazer quando se tornam especialistas.
Outra situação com consequências na formação de um médico é a mudança de turnos com a passagem de doentes, o que deveria ser um momento didático. É a altura para falar sobre os doentes, discutir os casos clínicos. Com a falta de tempo, essa passagem é rápida. Queixam-se, ainda, de não terem tempo para estudar, para escrever artigos científicos e para investigar.
Uma das três vagas que o Hospital de Aveiro levou a concurso este ano não foi preenchida. Ainda assim Tiago tem percebido que a sua unidade nem é a pior.
O problema tem vindo a complicar-se nos últimos anos, muito por culpa da pandemia, mas que não se resolveu com o controlo da doença. Há mais especialistas a sair do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e mais doentes a entrar nas Urgências, dizem os internos. E há vagas que ficam por preencher quando vão a concurso.
"Temos assistido a situações, como as do Hospital São Francisco Xavier, em que as escalas de urgência de Medicina Interna ficam repetidamente fragilizadas e reduzidas a internos", denunciam na carta enviada a Marta Temido. Acrescentam que não é exemplo único e que em outros hospitais multiplica-se "o recurso a internos, muitas vezes para preencher turnos de especialista das escalas de urgência", o que se tornou "um hábito, em prejuízo da sua formação, nomeadamente no que respeita à restante atividade assistencial, como consulta e internamento".
Sublinham que a Medicina Interna (MI) "é a especialidade médica sobre a qual assentam as estruturas hospitalares e os Serviços de Urgência de todo o país", que a "resposta que o SNS teve, e que continua a ter", perante e pandemia "apenas foi possível por causa do enorme esforço de especialidades como a MI". E que, sem os médicos internos de MI, "as escalas não seriam regularmente preenchidas".
Teresa Medeiros, 35 anos, está no 4.º ano da especialidade, no Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, formou-se primeiro em Técnica de Análises. Pertence ao núcleo de internos que decidiu escrever a carta e que ganhou muitos subscritores. "A situação estava um pouco melhor antes da covid, a pandemia veio estagnar o sistema e as coisas complicaram-se", afirma. E já não é possível continuar a exigir-lhes esforços suplementares.
Passou os primeiros seis meses do ano num estágio noutra unidade de saúde, o que é obrigatório Não tinha de fazer Urgências, mas por exigência do serviço, acabou por fazê-las e isso é trabalho suplementar. Fez 240 horas extra, mais do que as 150 previstas num ano e, ainda faltam quatro meses para o acabar. A médica salienta que isso é o normal entre os internos.
"Quem faz mais horas extra são os internos do 2.º ano, com os horários suplementares a serem preenchidos durante as noites. Não é o pagamento dessas horas que mais nos preocupa, mas a formação que está a ser dada. Além de estarem sobrecarregados, se estiverem num turno da noite não vão à enfermaria e não treinam as técnicas. Por exemplo, só fiz três vezes uma toracocentese [tirar líquido do pulmão] ao longo do internato, na Urgência torna-se impossível ensinar".
No seu hospital há 29 especialistas em MI e não houve vagas por preencher. "Ainda é considerado uma boa unidade para formação". Mas já tem acontecido desistências durante o internato e de colegas com esgotamento profissional. E isto levou-os a escrever à ministra, carta que foi assinada por 416 dos 1061 internos da especialidade.
Na conferência de imprensa na semana passada, o bastonário da ordem dos médicos, Miguel Guimarães, referiu haver internos com mais de 600 horas extra, casos que os próprios não querem divulgar, até com medo das consequências. A classificação final da especialidade - com a qual concorrem às vagas - também depende da nota da avaliação contínua, dada pelo serviço. "Quem faz a escala das Urgências são os diretores de serviço e são eles que nos vão dar a nota [avaliação contínua], há aqui um conflito de interesses", explica Teresa.
Noel Carrilho, presidente da Federação Nacional dos Médicos, reforça. "Para já, necessitam de trabalhar e aprender e, depois, em muitos locais, estão numa situação de fragilidade e de dependência da hierarquia, o que faz com que alguns quase sejam obrigados a fazer horas extra. O internamento não implica escravatura", denuncia.
Acrescenta que têm tido muitas denúncias dessas situações, até porque "esta geração tem cada vez mais consciência dos seus direitos, para a sua saúde e dos próprios utentes". E remata: "Estamos a falar de evitar o limiar do abuso".
A OM reúne esta segunda-feira com alguns dos internos de MI que subscreveram a carta à ministra, enviada a 16 de agosto. A semana passada receberam os de Ginecologia-obstetrícia (GO), os primeiros a pedir ao governo medidas, num texto que seguiu a 2 de agosto.
"Falámos de várias situações complexas, uma das mais complexas é o impacto que o excesso de horas extra tem na aprendizagem. Está-lhes a ser amputada uma parte da formação, porque estão continuamente a ser chamados para as Urgências. Alguns falam na dificuldade em obter as horas curriculares necessárias para concluir a especialidade, que têm de cumprir programas de formação e não o conseguem", denuncia o bastonário. Os internos de GO denunciaram situações que consideram de "escravatura". O encontro resultou numa terceira carta, esta da OM, que a enviou à ministra no final da semana [ver caixa].
Susana Costa, 29 anos, é interna de Ginecologia-obstetrícia, no Hospital de São João, no Porto. "Assinei a carta por estarmos a assistir à degradação do SNS. Ao fazermos tantas horas nas Urgências não temos disponibilidade para fazer a atividade programada do SNS, não é só a Urgência".
O primeiro semestre do ano esteve num estágio curricular fora do seu estabelecimento de saúde, regressou em julho e já fez cerca de 100 horas extra. Não conta o trabalho suplementar na enfermaria ou no bloco operatório, que salienta não ser remunerado. "As horas ficam registadas, mas quase nunca são usadas", diz Susana Costa. De tal forma que nem sabe ao certo quantas têm, serão 500 ou 600.
A sua especialidade é a que mais tem sido noticiada por falta de especialistas, o que tem levado ao encerramento de várias Urgências pelo país. O que significa mais carga horária para os internos. Entregaram às respetivas administrações hospitalares a minuta de recusa de realização de mais de 150 horas extra/ano (n. 2 do art. 38.º do Regulamento do Internato Médico), o que na prática, não tem significado a recusa em trabalhar mais.
Estes internos atendem os utentes nas Urgências, realizam partos, cesarianas ou qualquer intervenção cirúrgica ginecológica. Efetuando "inúmeras horas extra, tanto no Serviço de Urgência (remuneradas como horas suplementares), como na enfermaria, consulta e bloco operatório (não-remuneradas e não-contabilizadas)", lê-se na carta. Além da formação contínua obrigatória: cursos, congressos, projetos de investigação e pós-graduações.
À carga horária excessiva, juntam-se as baixas remunerações, um protesto generalizado dos internos. Auferem uma remuneração líquida entre 8,02 e 8,35 euros por hora (1283 e 1336 euros por mês para um contrato de 40 horas semanais), valores estes que se encontram estagnados há vários anos.
Em consequência de todos os problemas que enumeram, as "carreiras médicas hospitalares não são atrativas (pelas questões remuneratórias, mas não só)", assistindo-se "à saída dos colegas mais diferenciados e experientes do SNS, deixando os serviços de saúde depauperados e sobrecarregando os profissionais que se mantêm a exercer as suas funções". E consideram que até ao momento "não foram instituídas as medidas necessárias para travar esta espiral que se agrava todos os dias. Os atuais internos dificilmente conseguem perspetivar a sua futura carreira no SNS, comprometendo assim, seriamente, a qualidade e continuidade do serviço público".
Tiago, Teresa e Susana consideram, até, que os hospitais onde trabalho não são dos piores, tendo em conta os relatos que ouviram nos últimos dias de outros colegas. Elogiam os especialistas com quem trabalham e continuar no SNS é a primeira opção. Mas o privado está cada vez mais a assumir um papel importante nas opções de escolha como atividade principal, se continuarem a sentir que o que fazem não é reconhecido e não tiverem melhores condições.
Miguel Guimarães classifica estas cartas "como um alerta vermelho". Salienta: "Temos de estancar as saídas do SNS e para isso temos que dar melhores condições aos médicos que vão para formação". Há 67 mil médicos no país e, segundo estima, 50 % estão fora do SNS, grande parte no privado.