"Espinosa foi um dos maiores filósofos de todos os tempos e três povos podem reclamá-lo como o seu maior: o neerlandês, o judeu e o português"

Com este seu <em>O Segredo de Espinosa</em>, José Rodrigues dos Santos dá-nos a conhecer um judeu português de Amesterdão cujo pensamento, maldito na época para muitos, foi revolucionário, sobretudo na forma de entender Deus. O romancista e jornalista respondeu por escrito ao DN, abordando tanto as origens do filósofo e o contexto cultural em que viveu, como o impacto das suas ideias e ainda o "grande crime" que foi a expulsão e perseguição dos judeus portugueses há 500 anos. Livro é lançado hoje às 17h na Sociedade de Geografia de Lisboa.
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Bento Espinosa cresce na comunidade judaica portuguesa de Amesterdão no início do século XVII. Não existe qualquer dúvida de que a sua língua materna é o português? Tanto o pai, oriundo da Vidigueira, como a mãe, cuja família vivera no Porto, falavam português como língua do dia à dia?
O debate sobre as origens de Espinosa está encerrado. Durante muito tempo pensou-se que ele era espanhol, mas agora todos já sabemos que era português. Os judeus portugueses de Amesterdão falavam português em casa e na rua e os serviços religiosos na sinagoga eram conduzidos em português. Sendo portugueses, Espinosa e os seus pais e avós falavam todos português como língua materna. Existe até uma carta de Espinosa a um amigo neerlandês em que diz que se conseguiria explicar melhor se pudesse exprimir a sua ideia na sua língua materna. Ou seja, ele pensava em português.

Como se explica o amor a Portugal, exemplificado pela alegria com a Restauração da Independência em 1640, por parte de uma comunidade de refugiados religiosos, que sabia que a Inquisição continuava a perseguir o judaísmo um pouco por todo o Império Português?
É um dos traços mais surpreendentes da comunidade judaica portuguesa de Amesterdão. Os judeus estavam a ser perseguidos pela Inquisição, muitos eram nessa altura queimados vivos em Portugal, mas mesmo assim uma grande parte deles sabia distinguir a Inquisição, que odiavam, e o país, que amavam. Não todos, atenção, mas uma importante parte. Até enviaram armas e munições para ajudar Portugal a defender-se dos espanhóis. Na sinagoga ameaçava-se excomungar quem falasse mal dos representantes de Portugal. Já dos de Espanha podia-se falar mal à vontade.

A experiência de vida da família, judeus portugueses fugidos das perseguições católicas e refugiados nuns Países Baixos calvinistas, é importante na formação do pensamento filosófico de Espinosa?
Espinosa estava numa posição intelectual única. Naquele tempo acreditava-se que todos os mistérios do universo tinham solução na Bíblia. Os intelectuais detetavam, claro, incongruências nas Escrituras, mas achavam que isso se devia a erros de tradução e que o original em hebraico seria perfeito. Ora Espinosa lia hebraico e demonstrou, no Tratado Teológico-Político, que o texto original da Bíblia não era um texto divino, mas feito por homens para homens por razões humanas. Isso foi um grande choque e mudou tudo no pensamento ocidental. Ao retirar Deus da equação, Espinosa retirou poder à Igreja, viabilizou o aparecimento das ideologias modernas e finalizou o método científico que ainda hoje usamos.

Além da eventual Tanach, a Bíblia Hebraica em português, é provável ter havido outros livros em português na casa dos Espinosa, ou o mais óbvio é o latim, a língua de ciência e cultura da época, dominar nas estantes? Afinal, o seu mais famoso livro, Ética, foi escrito em latim.
O latim era a língua erudita, a língua dos intelectuais, e Espinosa tinha de a dominar para aceder ao pensamento dos intelectuais que o precederam, de Maquiavel a Descartes, e para poder exprimir ideias proibidas no seu tempo - e atenção que as ideias que ele exprimiu eram tão proibidas que o seu Tratado foi descrito como "um livro forjado no Inferno", o que significava que Espinosa era visto como a encarnação de Satanás, e interditado.

Como foi a reação da comunidade judaica de Amesterdão à filosofia de Espinosa? Foi logo um choque, prenunciando a futura expulsão?
Tudo o que Espinosa pensava e dizia entrava em choque frontal com os valores religiosos tradicionais, incluindo os dos judeus. Os líderes políticos e religiosos da Nação, a comunidade judaica portuguesa de Amesterdão, não podiam aceitar aquilo. Excomungaram-no com o texto mais violento jamais usado para uma excomungação judaica.

Fora da comunidade judaica, como era Espinosa visto nos Países Baixos?
Pelos intelectuais, como um iluminado. Quando os ingleses criaram a Royal Society e foram aos Países Baixos perguntar quem eram os maiores intelectos do país, os intelectuais neerlandeses conduziram-nos imediatamente a Espinosa. Já os religiosos calvinistas o odiavam. Por estes, Espinosa teria sido executado o mais depressa possível.

Como descreve a visão de Deus de Espinosa? Podemos sintetizá-la na resposta que no seu livro Espinosa dá ao filósofo Leibniz, quando o alemão lhe pergunta se acha que os homens devem viver sem religião? A resposta de Espinosa, que surge no seu romance, é "De modo nenhum. Mas, a termos uma religião, terá de ser uma religião que use a razão."
Espinosa desmontou os textos religiosos judaico-cristãos e foi o primeiro grande filósofo a retirar Deus da equação, com imensas consequências que conduziram à atual civilização ocidental, assente na ciência e na democracia liberal. Ele nunca propôs explicitamente que a religião tradicional fosse substituída por uma religião da razão, mas essa foi a leitura de quem o leu, e parece-me de facto implícita no seu pensamento. Para ele, Deus era simplesmente a natureza.

Espinosa é muito estudado, há várias biografias, mas mesmo assim, para si, reconstruir o ambiente judaico-português de há 400 anos em que ele cresceu foi difícil?
Todos os romances históricos dão imenso trabalho porque, justamente, é preciso reconstituir um tempo e um lugar que já não existe. Como se comportavam as pessoas naquele tempo e lugar? Como viviam? Como falavam? Como eram as suas relações? Como eram as casas e o que tinham lá? O que comiam? Como se divertiam? Há milhares de pormenores a considerar e é fundamental evitar anacronismos. Não é fácil.

Fala no final do livro da influência do pensamento de Espinosa na Constituição dos Estados Unidos. O seu pensamento foi crucial para a afirmação da ideia de liberdade religiosa no Ocidente?
As ideias de liberdade religiosa já andavam no ar nesse tempo nos Países Baixos, mas é sobre a desmontagem da Bíblia no Tratado Teológico-Político que se vão erguer as modernas sociedades liberais. Esse feito pertence a Espinosa. Foi ele quem mais influenciou todo o Iluminismo alemão, de Fichte a Kant, passando por Hegel, Nietzsche, Schopenhauer e até Marx, mas também Goethe e Heine, para já não falar no Iluminismo francês e britânico.

Judeus famosos como o cientista Albert Einstein ou David Ben-Gurion, pai fundador de Israel, tinham Espinosa em alta conta. É um nome maior do judaísmo, mas também uma grande figura da humanidade em geral?
Hegel disse: "quem se inicia em filosofia, tem primeiro de ser espinosista". Espinosa foi um dos maiores filósofos de todos os tempos e três povos podem reclamá-lo como o seu maior: o neerlandês, o judeu e o português. Os neerlandeses e os judeus homenageiam-no constantemente. Há estátuas dele por toda a parte, dedicam-lhe semanas nacionais, o seu rosto está por toda a parte. Estranhamente, nós ignoramo-lo. O nosso maior filósofo! Espero que O Segredo de Espinosa contribua para o fim desta lamentável postura.

Espinosa é a grande prova do que Portugal perdeu enormemente ao expulsar e perseguir os seus judeus? Imagina um país hoje diferente se D. Manuel I não tivesse cedido, embora contrariado, às exigências da noiva castelhana?
A perseguição dos judeus, para além de um grande crime, foi uma tremenda perda para Portugal. Educados, inteligentes, empreendedores e pragmáticos, os nossos judeus tinham tudo para ajudar o país a avançar. Porque pensa que os neerlandeses os acolheram e abraçaram? Não foi apenas por serem tolerantes. Foi porque perceberam que teriam imenso a ganhar com um povo assim no seu país. O tempo provou que tinham razão.

Há outras figuras da diáspora judaica portuguesa que possam dar tema a um livro?
Por acaso até há. Mas deixe-me manter os seus nomes para mim, nunca se sabe se um dia pegarei neles.

Recorda-se da primeira vez que percebeu a importância de Espinosa como pensador? Como se interessou pelo filósofo de origem portuguesa?
O Segredo de Espinosa insere-se numa série de romances que estou a escrever sobre pessoas ou momentos importantes na relação de Portugal com o mundo. Comecei com A Ilha das Trevas, sobre os esforços de Portugal para dar independência a Timor-Leste; a seguir veio A Filha do Capitão, sobre a participação de Portugal na Primeira Guerra Mundial; O Codex 632, em torno dos Descobrimentos; O Anjo Branco, relacionado com a presença portuguesa em África e a guerra colonial; O Homem de Constantinopla e Um Milionário em Lisboa, sobre Calouste Gulbenkian; e, por fim, O Segredo de Espinosa, em torno da vida do mais importante filósofo português e um dos criadores do mundo moderno. Portanto, interessei-me por Espinosa por ser alguém que liga Portugal ao mundo. Quanto à sua importância, só tive plena consciência durante a pesquisa: finalizou o atual método científico, inventou a exegese e o método de análise histórica, demonstrou que a Bíblia é um texto escrito de homens para homens com objetivos humanos e destruiu os alicerces do poder religioso, fundou o liberalismo e abriu caminho às modernas ideologias. Não é coisa pouca.

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