"Espero bem que após quatro anos de pesadelo voltemos aos processos da democracia à americana"

Professor na Universidade Brown, este açoriano que chegou aos Estados Unidos em 1972 para fazer mestrado e doutoramento é uma grande figura da comunidade luso-americana, autor de inúmeros livros como L(USA)lândia e (Sapa)teia Americana ou A Obsessão da Portugalidade.<strong> Onésimo Teotónio Almeida</strong> tomou posição enquanto cidadão americano contra Donald Trump, agora analisa para o DN as eleições que deram a vitória a Joe Biden.
Publicado a
Atualizado a

Surpreendeu-o a subida de votos de Donald Trump nestas presidenciais, mais sete milhões em relação a 2016, o mais votado candidato republicano de sempre apesar de derrotado?
Antes de iniciar esta conversa, gostaria de deixar claro que não sou nenhum especialista na política americana. Mais ainda, nem sequer sou politólogo. Sou apenas um cidadão que procura manter-se informado. Assino uma variedade de jornais e revistas, leio o máximo que posso, embora haja dias em que só consiga fazê-lo por alto, devido a falta de tempo. Também tenho lido livros sobre Trump. Alguns apenas, visto existirem centenas (já li que há milhares). Mas nada disso faz de mim um perito nem algo que se lhe pareça.

Passando agora a responder à pergunta: Sim, foi uma surpresa. E creio que para muita gente, pois eu pelo menos não havia lido nada a dar indícios de que se esperava uma corrida às urnas daquela dimensão. As notícias e comentários publicitavam prognósticos em termos de percentagens; nunca em números absolutos. A mobilização dos eleitores levada a cabo por ambos os partidos foi enorme e bem sucedida, quase se anulando reciprocamente. Tivesse ela ocorrido só de um lado e teria sido uma vitória retumbante para o candidato respetivo. Mesmo assim, uma vitória retumbante nunca é como no futebol, um resultado de 5, 6 ou 7 a zero. Nos EUA, as eleições são decididas sempre por uma pequena franja a meio do espectro político, que corresponde a uma percentagem aproximada de dez por cento da população, pois os votos finais oscilam em média entre os 45 e 55%.

Gostaria, entretanto, de acrescentar uma observação que reputo importante. Apesar dos exageros de grupos da direita (também os há na esquerda), não posso considerar necessariamente estúpidos ou mal-intencionados todos os 70 milhões de cidadãos americanos que votaram por Trump. Conheço gente, alguns amigos até, que votaram Trump, e que eu considero pessoas honestas. Votaram em causas e ignoraram a pessoa à frente do partido. Os cientistas sociais (e não os jornalistas) terão aí uma mina para pesquisa: tentar penetrar a sério e a fundo, desprovidos, tanto quanto possível, de preconceitos, as razões de fundo que levaram esses eleitores a votar pelo seu candidato. Aliás, deveria essa ser uma obrigação ética de politólogos e cientistas sociais.

Joe Biden foi a fórmula certa para os democratas derrotarem Trump, ou seja, qualquer outro que não o antigo vice-presidente de Barack Obama teria sido incapaz de mobilizar o partido?
Ninguém pode responder com segurança a uma pergunta deste teor. Basta ver que nem os especialistas em sondagens acertaram. Todavia, estou em crer que sim - é um gut feeling, como dizem em inglês. Calculo que muitos mais jovens teriam votado pelo Partido Democrata se Sanders tivesse concorrido. Em contrapartida, outros eleitores teriam provavelmente desistido de ir votar. O mesmo suponho que teria acontecido no caso de Elizabeth Warren, que por sinal granjeou muito mais simpatias do que Hillary Clinton. Todavia suspeito que não teriam sido suficientes para derrotar Trump.

Como vê esta resistência de Trump em aceitar a derrota? É espectáculo ou pode ser mesmo uma afronta à democracia americana?
Na verdade, não sei. Influenciado pelos livros que li sobre a personalidade de Trump, atribuo sobretudo a ela o modo como tem atuado ao longo destes quatro anos. Por outro lado, nunca uma figura da sua têmpera chegou a presidente dos EUA, e por isso não existem parâmetros para se julgar o modo como ele vem quebrando precedentes atrás um do outro. Trump não fez nenhum caso do que ditavam as normas processuais implicitamente vigentes e ignorou-as umas a seguir às outras. Continua a fazê-lo neste período pós-eleitoral. A sua conduta, hoje exposta ao mundo inteiro, só confirma as descrições tornadas públicas por psicólogos e psiquiatras, bem como por antigos colaboradores seus que o conheceram de perto ao vê-lo atuar no seu quotidiano exercício do poder executivo.

Que legado deixa nos Estados Unidos a era Trump? Sobretudo um Supremo Tribunal com uma maioria de juízes conservadores?
É sem dúvida um legado conservador e com sérias consequências a vários níveis. Gostaria, porém, de me debruçar especificamente sobre o poder judicial, dadas as diferenças do sistema americano em relação ao nosso nesse domínio. Nos EUA, que segue o direito comum (herança inglesa) e não o direito civil (tradição francesa), as decisões dos tribunais superiores também fazem lei na medida em que a sentença sobre um caso passa a vigorar como lei. Sobretudo assim acontece com o Supremo Tribunal, que toma decisões em casos inteiramente novos, aqueles que os tribunais menores não conseguiram resolver por não existirem precedentes. As decisões do Supremo passam, portanto, a constituir lei a ser seguida pelos restantes tribunais. Há presentemente inúmeras propostas de lei e de alterações de leis vigentes que vêm há tempos atingindo um impasse no Congresso. Por isso, Trump apostou agressivamente na nomeação de juízes conservadores não apenas no Supremo mas nos restantes tribunais (os media falam em cerca de 200 nomeações). Havendo impasse no Congresso, os casos acabarão assim sendo julgados maioritariamente por juízes de tendência conservadora. As nomeações para o Supremo Tribunal seguem, obviamente, a mesma linha política. Claro que foi por acaso que surgiram várias vagas durante o mandato de Trump, pois os nove juízes do Supremo Tribunal são vitalícios; mas a última nomeação ocorreu em vésperas de eleições e havia um precedente inverso na administração de Obama. No final do seu mandato, os Republicanos não deixaram que uma vaga fosse preenchida vários meses antes das eleições. Desta vez, mudaram de ideias e levaram avante e com êxito a nomeação da sua candidata cerca de uma semana antes do 3 de novembro.

Biden promete unir os americanos. Terá o presidente eleito e a sua vice, Kamala Harris, antídoto para a divisão na sociedade que os votos confirmaram e que até é anterior a Trump?
Biden mais que Kamala Harris, que é mais jovem e mais aguerrida. Biden foi sempre cordato e conciliador. Lembra muito George Bush (pai) no seu estilo de agir procurando soluções de compromise ("compromisso", termo que não existia no vocabulário português, mas agora já vai circulando), em que ambas as partes cedem um pouco e acabam encontrando uma solução mais ou menos a contento de ambas as partes, se bem que nunca totalmente satisfatória para qualquer delas.

Como vê o papel no mundo dos Estados Unidos depois de 20 de janeiro de 2021, quando Biden tomar posse? Regresso ao acordo de Paris sobre o clima, nova atitude com parceiros europeus, diálogo renovado com Irão e Cuba?
É muito futurismo para o meu estilo. Nem sequer sabemos ao certo ainda que Gabinete Biden escolherá, embora vários nomes já circulem nos média, como acontece com o do luso-americano Ernest Moniz. O mais natural é que ele regresse com a sua visão e políticas implementadas durante o Governo de Obama. Mas quanto ao mais, repito: tudo o que eu dissesse aqui equivaleria a prognósticos futebolísticos e prefiro seguir a sabedoria de João Pinto: prognosticar só depois do jogo.

Quanto ao papel dos EUA no mundo, vejo-o bastante debilitado. Sabemos que Trump terá servido de estímulo a ditadores e governos autoritários por esse mundo fora, donde se infere que a sua retirada possa nesse domínio ser benéfica. Em relação à Europa e a Estados empenhados na modernização, o que se passou foi um imenso esbatimento da imagem dos EUA como modelo, imperfeito embora, de democracia. Por exemplo, grande parte do conhecido anti-americanismo de certa Europa é ainda resultante de sociedades que durante séculos mantiveram tradições algo aristocráticas sem ninguém se atrever a contestá-las. Nos EUA, tudo foi construído muito mais tarde e a partir do zero, sem certos preconceitos e crenças serem alguma vez questionadas. Aqui, cada peça do processo de construção social tem de ser justificada. O que significa que na Europa é muito mais fácil manter indiscutíveis certos valores tradicionais. Por outro lado, há valores que esta sociedade adotou e tomou como fundamentais, e que nem sempre são bem percebidos ou notados do outro lado do Atlântico. De qualquer modo, as gerações mais jovens do mundo inteiro habituaram-se a olhar para os EUA como um modelo que, apesar das imperfeicões, caminhava na vanguarda em busca de soluções inovadoras. Essa imagem ficou bastante debilitada e é cedo para se vaticinar quanto tempo tal enfraquecimento vai perdurar. Estes quatro anos poderão passar à história como um interregno resultante da explosão das redes sociais, que desestabilizaram os habituais processos do funcionamento democrático, ou poderão, pelo contrário, ser um prenúncio do que será o futuro em que cada um pode avançar com as suas concepções de verdade e fazer alianças com os seus correligionários, em cata de instauração de um poder que deixe os cidadãos em total liberdade para porem em prática as suas convicções. Contra os neo-liberais, hoje tão castigados por uma esquerda altamente idealista (o que não significa que na prática os seus ideais sejam cumpridos), o poder ficará nas mãos dos libertários que se rebelam contra as intromissões do Estado no quotidiano individual.

Publicou em vésperas das eleições no Portuguese Times e aqui no DN uma declaração de princípios éticos que terminava com a seguinte frase: "Basta! Dump Trump! Urge regressarmos a uma vida cívica civilizada". Está convicto de que esse regresso começa a acontecer?
Escrevi essa declaração de voto para ser publicada em jornais luso-americanos, como de facto foi. Achei que era meu dever como cidadão não me manter em silêncio perante tantos atropelos às normas de convivialidade que há décadas me habituei a ver e admirar na vida cívica dos EUA. Tratou-se de uma declaração de valores. Não significa que eu creia que os EUA tenham alguma vez sido uma democracia pura. Ela não existe nem é possível. Mas desenvolveram ao longo de séculos um conjunto de regras e códigos que é reproduzido internamente nas principais instituições do país e chega até às pequenas associações. A grande maioria dos cidadãos procura segui-las porque são elas que permitem evitar a desordem ou até o caos. Existe mesmo um código, o Robert"s Rules of Order, que todas as instituições e associações adotam e a que recorrem quando é necessário resolver atritos e desavenças. Trata-se de um conjunto de regras aperfeiçoadas ao longo dos tempos precisamente para orientar a condução do processo democrático do encontro de consensos.

Essas regras de conduta básica do debate e da busca de soluções democráticas foram todas ou quase todas ignoradas por Trump e de um modo grosseiro, patente a quem quer que se dispusesse a observar a cena política em Washington. Ora, mesmo no futebol não aceitamos que determinados códigos de conduta sejam transgredidos. Daí o recorrer-se aos cartões amarelo e o vermelho. Trump tem cometido inúmeras infrações e, quando os meios de comunicação lhe mostram um vermelho, acha sempre que é pura má-vontade. Nunca compreendeu que contestam o seu comportamento (agora até a sua adorada Fox News!) porque ele infringe regras elementares. Ouço pessoas repetirem que os media estão sempre contra Trump, mas a verdade é que desde o dia da tomada de posse ele achou que poderia desprezar os factos (mesmo a informação registada em fotografias) e dizer, por exemplo, que tinha tido a maior multidão de sempre no Mall na sua cerimónia inaugural. Isso foi apenas o princípio. Não, não creio que Biden e a sua equipa irão pelo mesmo caminho. Espero bem que tenhamos apenas passado quatro anos de pesadelo e voltemos aos processos da democracia à americana, praticados ao longo de dois séculos e meio tanto por governos Democratas como Republicanos.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt