Em ouro e diamantes, o espadim de aparato do rei D. João VI (1767-1826), adquirido pelo Estado português em dezembro passado, será uma das joias mais impressionantes do Museu do Tesouro Real, que o Palácio Nacional da Ajuda espera inaugurar na sua ala poente ainda neste ano. Com esta aquisição (ao Antiquário do Correio Velho, no valor de 120 mil euros), fica concluído o esforço de décadas para resgatar e reunir num todo o património de alto valor artístico do primeiro rei português a jurar fidelidade a um texto constitucional. Como diz ao DN José Alberto Ribeiro, diretor do Palácio da Ajuda, "este espadim teve uma vida um pouco turbulenta, como aconteceu a muitas joias que acompanharam a família real ao Brasil, aquando das invasões napoleónicas, e depois voltaram ao reino. Mas estamos certos de que se trata do espadim do rei, já que é uma peça amplamente documentada, desde logo em retratos da época assinados pelo pintor Domingos Sequeira"..Como se sabe, não foi exatamente pela harmonia doméstica que a família de D. João VI passou à história. A par das tribulações que o levaram ao Rio de Janeiro, e depois de regresso a Portugal, o monarca, a mãe (a rainha D. Maria I, que morreria no Brasil em 1816), a mulher, Carlota Joaquina, e os filhos de ambos, há que falar das desavenças que opuseram D. Pedro e D. Miguel, que não só envolveram toda a família como todo o reino numa guerra civil. Após a derrota militar e a assinatura da Convenção de Évora Monte, em 1834, D. Miguel foi impelido a restituir à Coroa joias e demais valores em seu poder, fossem eles bens da Coroa ou pessoais, muitos deles herdados do pai. O património que deixou em território nacional, antes de partir a 1 de junho desse ano para o exílio em Itália, deu entrada nos cofres do Banco de Portugal e D. Miguel jamais o reclamou. Entre as peças então depositadas estava o espadim em ouro e diamantes que fora de D. João VI..Antes de partir, D. Miguel assinara, porém, um documento em que confirmava ter uma dívida para com a sua irmã mais nova, a infanta D. Ana de Jesus Maria (1806-1857) comprometendo-se a liquidá-la com algumas das suas joias pessoais. Ora, a infanta casara, em 1827, com o 2.º Marquês de Loulé (mais tarde ascenderia a 1.º duque de Loulé) de quem viria a ter cinco filhos, todos com descendência, separando-se do marido em 1835. Em meados do século XIX, apareceriam, assim, dois grupos de herdeiros a exigir ao Estado português a restituição dessas joias: os descendentes de D. Miguel, por um lado, e os de D. Ana de Jesus Maria, por outro. O processo arrastou-se quase cem anos e só nas décadas de 30 e 40 do século XX conseguiram os herdeiros reabrir judicialmente o processo de herança e definir o estatuto jurídico dos bens..Em 1943 veio a ser decidido, por ambas as partes, a realização de um leilão particular dos bens depositados. Salazar, consciente do elevado valor artístico e histórico de algumas destas joias encarregou o ourives do Porto, José Rosas Júnior de proceder ao estudo e avaliação das mesmas com vista à sua possível compra. Com efeito, o Estado português, exercendo o seu direito de opção, adquiriu então um relevante lote de objetos do qual se destaca a Insígnia da Ordem do Tosão de Ouro, mas o espadim foi adquirido por um descendente de D. Ana de Jesus Maria. A mesma família que décadas depois o poria à venda..O reluzente espadim do rei e muitas outras peças até agora inacessíveis aos nossos olhos poderão ser vistas, espera-se, ainda neste ano no Museu do Tesouro Real. "Apesar da pandemia, as obras continuam em bom ritmo", diz José Alberto Ribeiro, "mas não nos podemos comprometer com uma data de inauguração". Com projeto do arquiteto João Carlos Santos, será "um edifício de alta segurança, como não há outro, em termos museológicos, no nosso país", o que nos permitirá apreciar "objetos de grande valor histórico e artístico". Ao todo serão 900 peças de joalharia, como as relacionadas com a aclamação dos reis (coroa, cetro, tiaras), pratas de aparato do século XVI, a famosa baixela Germain de D. José I, ofertas diplomáticas, várias condecorações honoríficas dos reis ou joias privadas da família real, cheias de pepitas de ouro, esmeraldas, safiras ou diamantes. Isto para além da iconografia e pintura da época que nos permitirão pôr em contexto histórico tão valioso conjunto".