Escritaria faz Sousa Tavares sentir-se em Penamiguel

A décima edição do evento literário de Penafiel foi dedicada o autor de "Equador", sucedendo a escritores como Saramago, Lídia Jorge ou Lobo Antunes.
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Miguel Sousa Tavares chega à sessão de sábado à noite do Escritaria satisfeito. O grande auditório do Museu Municipal de Penafiel está repleto e já tirou várias selfies com leitores e cidadãos da cidade, mas também porque o jogo do seu clube preferido estava a correr muito bem. Ainda faltavam uns minutos para terminar a partida, mas aqueles que aguardavam a sessão da noite exigiam a sua presença, bem como o quarteto de jovens cantores que iria fazer a introdução musical já estava pronto para atuar. Jovens que, tais como os outros atores do Grupo de Teatro Andaime que durante os dias deste festival literário único em Portugal, pois dedica cada edição a um só autor, também o tinham surpreendido ao representarem pelas ruas de Penafiel textos dos seus livros e dos vários escritores que têm vindo a ser homenageados durante a década em que o Escritaria acontece.

Pouco tempo antes, Sousa Tavares tinha estado a dar autógrafos na Feira do Livro, uma das muitas atividades da agenda que celebra o autor de Equador e de mais de uma dúzia de outros livros em vários registos, que já venderam mais de um milhão de exemplares, onde durante mais de duas horas assinou e conversou com os seus leitores. Uma montra de literatura onde estava presente a centenária Livraria Reis, cujo proprietário destacou a importância da vinda destes homenageados a Penafiel devido à "mobilização que provoca nos leitores e pelo envolvimento criado com os estudantes das escolas da região".

Fora do pavilhão da Feira do Livro, pelas ruas da cidade, a tradicional "contaminação", ou seja, muitas referências criadas sobre a obra do autor em pinturas, caixas de cartão com a sua fotografia, entre outras peças de mobiliário urbano que vão sendo distribuídas pelas ruas várias vezes ao dia para que todos fiquem com uma recordação.

Após uma sexta-feira de várias atividades, entre elas uma apresentação do autor pelo escritor Mário Cláudio e o relançamento do seu livro O Planeta Branco por Cristina Ovídio, a noite de sábado fechou com uma entrevista de vida conduzida por Júlio Magalhães, durante duas horas. Apesar do percalço de o entrevistador se ter esquecido da folha com as perguntas, tal não impediu que a conversa fosse solta, nem que Sousa Tavares se divertisse com a primeira pergunta: se temia chegar ao fim de vida sem uma homenagem deste género. O autor confessou que estava surpreendido com o que estava a acontecer-lhe em Penafiel e de tão ofuscado com o evento até disse que achava que não se encontrava em Penafiel mas em Penamiguel. Quanto ao uso da classificação de "obra" no que respeita ao que escreve, Sousa Tavares considera que não se sente autor de uma obra, mas de livros: "Obra é pomposo de mais." Quanto a ter já escrito o livro da sua vida, respondeu: "Se disser que sim, ficaria deprimido, mas não posso ignorar que Equador foi importante na cena literária portuguesa. Não foi preciso escrever frases sem pontuação ou tudo em minúsculas, apenas contei uma história." Recordou o que uma senhora que lhe dissera na sessão de autógrafos anterior: "Obrigado por escrever simples." O Equador ficou mais um pouco sobre a mesa e explicou como nasceu o romance. Fora despedido e viajara para São Tomé, onde descobriu que tinha havido um conflito entre as autoridades portuguesas e inglesas mesmo a calhar como argumento: "Nunca tinha escrito um romance e quando ganhei coragem para o fazer foram nove meses sem parar. Depois, interrompi durante seis meses e achei que não seria capaz de o acabar. No entanto, um filho disse-me para continuar a escrever a partir de onde tinha deixado e lá consegui acabar."

Segue-se o romance Rio das Flores e a dificuldade para resumir toda a investigação. Questionado sobre se é preciso viajar aos cenários onde se passa a ação, Sousa Tavares contou que um dia perguntou a Chico Buarque como tinha escrito um livro centrado em Budapeste sem nunca lá ter ido, ao que o cantor respondeu com uma pergunta: se ele tinha viajado ao passado para escrever o Equador. O que Sousa Tavares mais lamenta é nunca ter conseguido escrever poesia, principalmente porque é filho de uma poeta e cresceu numa casa em que a poesia era como o pão. Referiu que ainda apresentou uns poemas à mãe, mas ela achou melhor que se dedicasse à prosa. O romance, diz, era o grande desafio e receou pelo fim de Equador quando se envolveu tanto que chegou a "estar em levitação literária" ao escrever dezenas de páginas por dia.

Fora do auditório, o rosto de Sousa Tavares está em todas as montras das lojas e, garante, até se assustou ao rever-se, tendo recordado uma frase de Corto Maltese, que também receava ver a sua imagem refletida no espelho. Da personagem de banda desenhada passou para Hemingway e o desejo de escrever diálogos como os deste escritor e de ter uma escrita cinematográfica para sentenciar que "um mundo sem livros e jornais é fatalmente pior".

Entre as afirmações mais polémicas da entrevista esteve a de achar que em Portugal todos publicam romances: "Qualquer menina da televisão conta aos 28 anos a sua vida em livro!" Ou: "A crítica tem por mim um profundo desprezo. Tenho péssima crítica, mas convivo bem com isso porque escrevo para os leitores. Não me basta um leitor ou ser conhecido na minha rua. A minha obrigação é escrever de forma a interessar quem pega num livro. Eu, se ler quatro páginas e não me interessar, ponho logo o livro de lado."

O fecho do Escritaria deu-se com os depoimentos sobre o autor por parte de António Lobato Faria, José Maria Barata-Feyo e Luís Braga da Cruz. Desta décima edição do Escritaria fica uma silhueta e uma frase numa placa na Praça da República a assinalar a homenagem a Miguel Sousa Tavares. As palavras escolhidas foram: "Escrever é usar as palavras que se guardaram: se tu falares de mais, já não escreves, porque não te resta nada para dizer."

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