Escravatura e discriminação

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A reformulação ideológica da história, além de contribuir para agravar a dificuldade de projetar o futuro, que exige que o legado não seja aceite a benefício de inventário, como é possível nas heranças patrimoniais, mas avaliar a articulação com a contribuição para o Património Imaterial da Humanidade, hoje, globalmente, preocupação da UNESCO.

Lembro que quando, por outubro de 1956, a França e a Inglaterra, membros do Conselho de Segurança, decidiram, com a cooperação de Israel, impedir Nasser de nacionalizar o Suez, foram impedidos com desprestígio para as suas lideranças de governo. Ao mesmo tempo, uma coincidência não inocente, a Sociedade Britânica contra a Escravatura realizou em Génova uma conferência sobre o tráfico de escravos que tinha em vista reformular a fiscalização da navegação do Índico, controlando o acesso ao canal. Portugal tomou parte, porque a referida alteração daria à Índia o direito de fiscalizar a nossa navegação para Goa.

A intervenção militar foi um fracasso, mas a Conferência chegou à conclusão de que havia milhares de escravos, de primeira geração, trazidos para o Médio Oriente desde o Senegal, com a convicção de fiéis, mas a designação conhecida de Slave Travel Cheque, porque com eles pagavam as despesas da viagem que os levava a prestar a grande homenagem a Maomé.

Estávamos numa época em que Weber identificou os que chamou "povos párias", para caracterizar o terceiro mundo, e também as chamadas "camadas párias", que era expressão da influência da doutrinação de Thomas Piketty no seu O Capital no Século XX. Não é talvez excessivo aceitar que se pode no ano de 2020 usar a expressão, de conteúdo complexo, "escravos", para comparação com a época que viveu o padre António Vieira; a importância ética da sua intervenção de jesuíta, e a dificuldade da época para alterar a relação de poder nas estruturas políticas ocidentais do seu tempo. Isto porque é útil lembrar um conceito, que lhe é atribuído, de que "os portugueses cumprem o seu dever, e a pátria o que é costume".

Felizmente, antes deste 2020, sem bússola, foram os professores Pedro Calafate e Ramon Emílio Mandado Gutiérrez que organizaram o importante livro chamado Escola Ibérica da Paz, com prefácio do juiz Antônio Augusto Cançado Trindade, da Corte Interamericana de Direitos Humanos, e chancela da Universidade de Cantábria, reunindo o pensamento de professores do passado, incluindo Coimbra, Évora e Salamanca, sobre direitos dos nativos, como pessoas e donos da terra, antecipando séculos os textos que formalmente deram raízes à futura aprovação dos "direitos humanos", sem distinção de etnias, culturas ou religiões. Designadamente no Brasil, os jesuítas encontraram o conflito entre o direito do Estado com que, para assegurar interesses, se apoiava a escravatura dos africanos, o que os inclinou no sentido de fazer proteger a debilidade dos nativos, débeis fisicamente. Cresce de importância a afirmação do muçulmano Maalouf quando salientou que os últimos tempos dotaram as comunidades de ferramentas que os séculos passados nem imaginaram, na produção e divisão das riquezas.

Vieira, que tanto ajudara D. João IV na independência do reino contra o poder do rei de Espanha, que em Roma lutava para conseguir impedir a Inquisição portuguesa, condenou a condição jurídica dos escravos africanos, e no ano de 1633 fez a demonstração. Pregava em Salvador da Bahia à Irmandade dos Pretos de um engenho no ano de 1633 e disse: "Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado: Imitatoribus Christi crucifixi - porque padeceis em um modo muito semelhante ao que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz e em toda a sua paixão. A sua cruz foi composta de dois madeiros, e a vossa em um engenho é de três. Também ali não faltaram as canas, porque duas vezes entraram na Paixão: uma e outra vez para a esponja em que lhe deram o fel. A Paixão de Cristo, parte foi de noite sem dormir, parte foi de dia sem descansar, e tais são as vossas noites e os vossos dias. Cristo despido, e vós despidos; Cristo sem comer, e vós famintos; Cristo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo. Os ferros, as prisões, os açoites, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa imitação, que, se for acompanhada de paciência, também terá merecimento de martírio." (1686).

A escravatura só foi extinta no Brasil pela regente princesa Isabel, e com concordância do seu pai, sabendo que perdia a coroa real. Mas, como está bem demonstrado na história que Gilberto Freyre quis escrever, mas morreu antes, do iberotropicalismo, e também na guerra civil norte-americana e assassínio do presidente Abraham Lincoln, que extinguira a escravatura, a situação de resistência durou socialmente tempo longo, de modo a impedir a revogação dos costumes. Ainda hoje é verificável, mas a história de cada nação não é recebida a benefício de inventário, mas sim pelos valores com que enriquece o Património Imaterial da Humanidade, de que se ocupa a UNESCO.

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