Não é um espetáculo bonito ver Vítor Constâncio contagiado pela amnésia que tem vitimado quase todos os responsáveis da banca portuguesa, chamados a prestar declarações no Parlamento. Contudo, parece-me injusto remeter aquele que foi governador do Banco de Portugal (BdP) nos anos críticos de 2000-2010 para o estatuto de cúmplice de Berardo e instrumento da maior teia de corrupção da história portuguesa, que a justiça tenta, arduamente, deslindar..Vítor Constâncio tem graves responsabilidades no estado atual do país. Responsabilidades, contudo, que não precisam de ser analisadas em comissões de inquérito, pois estão à vista de todos os que estudem seriamente a história recente de Portugal. Constâncio foi o guru do PS para os assuntos europeus em matéria financeira e económica. Recordo-me da enorme admiração que Mário Soares nutria por ele. Suspeito que Guterres não tivesse exibido um entusiasmo tão messiânico pela moeda comum - que até o sóbrio pai fundador do euro, Otmar Issing, recorda num seu livro - sem o conforto do seu aconselhamento. O problema de Constâncio reside na sua leitura profundamente errada da natureza da União Económica e Monetária (UEM). O homem que chefiou o BdP no perigoso período inicial da implementação do euro, após a perda da soberania monetária e cambial, estava cheio de cego otimismo, em vez de imbuído do cuidado adequado ao cargo e ao momento. Em 2000, contra aqueles que alertavam para o perigo da dívida externa, o novo governador ripostava com arrogância doutoral: "[Combatendo] alguns equívocos sobre o significado da balança externa corrente para uma região de uma união monetária como é atualmente Portugal. Sem moeda própria não voltaremos a ter problemas de balança de pagamentos iguais aos do passado (...) Ninguém analisa a dimensão macro da balança externa do Mississippi ou de qualquer outra região de uma grande união monetária.".Estas ideias revelam tanto uma ignorância profunda sobre o funcionamento do federalismo norte-americano como uma aposta ingénua na bondade protofederal da UEM. Considerar irrelevante a balança externa era o mesmo que fechar os olhos à enxurrada de dívida das empresas e das famílias (fundamentalmente contraída no exterior) que ultrapassaria os 200% do PIB até à sua saída do cargo. Na banca, a situação não era melhor, com um rácio médio de transformação de depósitos em crédito de 161,5% (contra prudentes 65% em 1995), havendo instituições com rácios superiores a 200%..O erro de Constâncio e do socialismo europeu foi o de terem acreditado no canto de sereia do neoliberalismo, e na letal tese de F. Hayek de que o sistema financeiro deveria ser deixado ao seu "espontâneo" impulso para a "autorregulação". O sismo na banca portuguesa foi apenas um capítulo da crise sistémica da banca europeia, consentida e encorajada pela UEM. A invenção posterior da "crise das dívidas soberanas", que obrigou os cidadãos a resgatar com o seu suor a banca europeia, mostra, contudo, como pode ser ténue a fronteira entre o erro e o crime..Professor universitário