Eram três colegas ucranianos no mesmo avião. Só Igor foi barrado – e morreu
A última vez que Igor (a família pediu que o apelido não seja divulgado) falou com Oksana, a mulher, foi no aeroporto de Lviv, na Ucrânia, quando se preparava para apanhar o voo para Istambul. Disse-lhe que estava quase sem bateria no telemóvel e que ia tentar carregá-lo.
O que impediu o ucraniano de 40 anos de conseguir carregar o telefone durante o tempo que esteve no Centro de Instalação Temporária do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, no aeroporto de Lisboa, e de voltar a falar com a mulher não se sabe. Muito pouco de resto está assente sobre o que se passou realmente desde a sua chegada a Lisboa, a 10 de março, até ao momento em que a morte foi declarada, no dia 12 - a não ser que Igor esteve sempre sob custódia do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, morreu sob essa custódia sem que a Polícia Judiciária fosse chamada, a autópsia revelou sinais de violência e três inspetores do SEF foram detidos na segunda-feira por suspeita do seu homicídio qualificado, tendo-lhes sido no mesmo dia decretada prisão domiciliária.
O que já é possível dizer com certeza é que Igor, que se apresentou à entrada do país como turista, veio a Portugal, como o DN adiantara esta segunda-feira, para assinar um contrato de trabalho com uma empresa portuguesa de construção civil - teria com ele os papéis do contrato, como afirmou ao DN Maria, uma amiga da família que vive em Portugal e em casa de quem era suposto Igor ficar. O trabalho iria decorrer na Bélgica, onde tinha estado recentemente, presume-se que ao serviço da mesma empresa, durante meio ano, e seria suposto partir para lá de seguida. Igor era um trabalhador sazonal: costumaria estar fora do país na primavera e verão - teria passado já temporadas na Rússia e Polónia - e ficar no inverno com a família.
Com ele viajaram desde a Ucrânia, com escala em Istambul, dois outros compatriotas, que terão tido a sorte de "passar" a barreira do SEF. Terá eventualmente sido um deles que ligou ao presidente da Associação dos Ucranianos em Portugal (AUP), Pavlo Sadokha, a comunicar-lhe que Igor morrera no aeroporto, por ataque cardíaco, e a pedir ajuda para pagar a trasladação do corpo.
"Quando voltei a falar com ele, já depois de sabermos que afinal a morte não tinha sido de causas naturais, ele disse que estava na Bélgica e não queria envolver-se mais no caso", diz Pavlo, que não conhece o homem e não percebeu (na altura não era relevante saber) quem lhe tinha dado aquela informação sobre a morte de Igor.
É o presidente da AUP que, após falar com um amigo muito próximo de Igor que vive na mesma cidade - Novoiavorivsk, com cerca de 30 mil habitantes, perto da fronteira com a Polónia - onde este habitava com a mulher, professora do ensino básico, a filha de 14 anos e o filho de oito, confirma ao DN todas as informações que Maria já avançara. Incluindo que "Igor era uma pessoa muito calma, nada agressiva." Não é, admite Pavlo, "que seja impossível aquilo que se diz, que ele ficou agressivo no aeroporto quando o impediram de entrar, mas toda a gente que o conhecia estranha."
É por este amigo de Igor que Pavlo fica a saber das circunstâncias da última chamada dele para a mulher. E também que Igor estava enlutado quando partiu da Ucrânia: a mãe tinha morrido havia duas semanas. Dois lutos seguidos numa família que é descrita como "muito religiosa" e que até agora recusou falar aos media, incluindo os do seu país, estando, de acordo com o cônsul da Ucrânia em Lisboa, Volodymyr Kamarchuk, a decidir que advogado escolher para a representar em Portugal. "A nossa lei não permite que a embaixada pague a representação jurídica mas há vários advogados a oferecer-se para o fazer pro bono", diz o diplomata. Também à UAP estão a chegar muitas ofertas de apoio jurídico.
Um apoio que teria sido fundamental para evitar o que aconteceu, garante Timóteo Macedo, presidente da associação Solidariedade Imigrante. "Há muito, já no tempo em que Jarmela Palos era diretor do SEF [este foi nomeado em 2005 e saiu em 2014], que reivindicamos que haja direito de defesa ali, que haja um posto de atendimento e apoio jurídico para quem chega a Portugal. Fiz esse apelo, propondo uma parceria com a Ordem dos Advogados, que estava disponível para avançar. Porque, repare: com que legitimidade um inspector do SEF faz um interrogatório a alguém estando só os dois numa sala? Aquelas pessoas não têm sequer a possibilidade de ligar a uma associação."
Aliás, mesmo quando conseguem contactar um advogado este muitas vezes tem dificuldade de chegar ao cliente, assegura, indignado, o respetivo bastonário, Luís Menezes Leitão. "Temos muitas queixas de advogados que têm dificuldade de aceder àquele espaço. Tem de se acabar esta cultura de fechar estas situações ao acesso dos advogados, apelamos ao ministério da Administração Interna, que tem a tutela, que garanta a assistência jurídica. E devia haver a possibilidade de ser contactado um serviço jurídico de urgência."
Adianta que quer a embaixada da Ucrânia quer a associação dos advogados daquele país tinham já solicitado à OA que desse apoio jurídico adequado, pelos advogados portugueses, aos nacionais respetivos. E vê no caso de Igor "uma gravidade extrema, demonstrando bem a necessidade de uma presença de controlo naqueles espaços, que poderia funcionar como as escalas dos advogados nos tribunais" - ou seja, estando sempre, como propõe a Solidariedade Imigrante, causídicos de prevenção para apoio de quem é detido.
Se Igor tivesse lá um advogado, frisa o bastonário, tudo seria muito diferente: "É que se pode dar mesmo o caso de aquela detenção ter sido ilegal. Este tipo de detenção deve ter um controlo." E, conclui, "apesar de toda a gente ter direito à presunção de inocência, é absolutamente inaceitável que algo assim ocorra, sob a custódia do Estado. O Estado é responsável pelo que se passa ali e têm de ser dadas explicações urgentes."
Isso mesmo exigiram esta terça-feira o PSD e o Bloco de Esquerda. O grupo parlamentar deste partido quer ouvir o ministro que tutela o SEF, Eduardo Cabrita, sobre o assunto.
Talvez Igor tenha sido a vítima necessária para que as coisas mudem, reflete Timóteo Macedo: "Parece que é preciso haver sangue para as pessoas acordarem - talvez agora avancem com soluções."
Até mudarem, as coisas ficam na mesma. E o comum neste tipo de situações que envolvem polícias, forças de segurança e suspeitas - ou, no caso, evidência - de violência, é a opacidade.
Como o DN revelou esta segunda-feira, a embaixada da Ucrânia tinha sido informada, no dia 11, de que Igor fora impedido de entrar em Portugal e iria ser deportado, uma situação que o cônsul considera "normal", ou habitual, e não suscitou qualquer cuidado. A informação seguinte, que chegou por mail perto da meia noite de dia 12 - ou seja, muitas horas após a morte, que uns relatos situam na manhã desse dia, outros na tarde (nem sobre isso existe até agora informação pública incontroversa) -, foi bastante menos banal: uma frase curta e seca dava conta da morte, sem especificar as circunstâncias ou causas. Quando na manhã seguinte a embaixada ligou ao inspetor que enviara o mail, com o objetivo de saber mais, a causa do decesso foi atribuída a "problemas epiléticos". Causas naturais, portanto.
Foi essa a informação que toda a gente, do referido colega de Igor que ligou à UAP à família, passando pela embaixada, deteve durante 17 dias, até à noite do último domingo, quando a TVI noticiou que três inspetores do SEF eram suspeitos da morte. O que foi confirmado pela detenção, na segunda-feira, dos ditos inspetores, seguida do anúncio, pelo próprio SEF e pelo MAI, da demissão do diretor e subdiretor do SEF de Lisboa e da abertura de "processos disciplinares a todos os envolvidos".
Quem são "todos os envolvidos", além dos referidos diretores (a quem é dito que foram instaurados processos), e em que consiste esse envolvimento não é sabido; as perguntas feitas pelo DN ao MAI e ao SEF, no sentido de averiguar vários aspetos do caso que não se prendem com o processo criminal - nomeadamente quando foram abertos os inquéritos internos, que medidas disciplinares o SEF aplicou (já que este afirma que as aplicou, apesar de os três inspetores não estarem sequer suspensos quando foram detidos) e quem tinha o poder de decidir, perante a morte de Igor, chamar ou não a PJ - não tiveram até agora resposta.
Facto é que o ocorrido levou a embaixada a endereçar uma duríssima carta ao ministro dos Negócios Estrangeiros, que publicou no seu Facebook, na qual acusa o SEF de "omitir a verdade" e de "violação flagrante dos direitos humanos", solicitando que a mantenham informada sobre o caso.
Augusto Santos Silva respondeu em chamada telefónica para a embaixadora, cujo teor foi também revelado no FB da representação diplomática ucraniana, assegurando que tudo será averiguado. Versões similares da carta foram endereçadas à Policia Judiciária e à Procuradoria Geral da República - até esta terça-feira, só a PJ tinha respondido, informando do que já era domínio público: a detenção dos três inspetores do SEF indiciados de homicídio qualificado.
Quanto à acusação de omissão de verdade por parte do SEF, não houve até agora qualquer reação do MAI ou do governo português.