Era uma vez um príncipe chamado Eddie Murphy
Uma grande operação de nostalgia. É assim que se pode definir 2 Príncipes em Nova Iorque, de Craig Brewer, a sequela do filme de John Landis que, em 1988, cimentou a popularidade de um jovem Eddie Murphy. Agora quase a fazer 60 anos (3 de abril), o ator retoma o papel do príncipe Akeem, com as responsabilidades decorrentes da idade, mas menos tempo de antena... Esse ser de candura nobre que outrora viajara do reino de Zamunda até ao bairro de Queens, em Nova Iorque, para encontrar o amor na filha do dono de um restaurante de fast-food, ainda é apaixonado pela sua princesa americana (Shari Headley), têm três filhas e, com o pai (Sua Excelência James Earl Jones) no leito de morte, está prestes a tornar-se rei. O que lhe coloca um problema prático: quem vai herdar o trono depois dele? A coisa resolve-se com a revelação do enfermo Rei Joffer de que Akeem tem um filho bastardo em Queens - ou seja, afinal não sabíamos todos os pormenores sobre a sua primeira viagem. Está então justificado o regresso ao bairro onde ele e o amigo Semmi (Arsenio Hall) foram felizes.
A celebração da nostalgia começa aqui, com um argumento arranjado à papo-seco para refazer os passos do primeiro filme na personagem desse filho que Akeem resgatou à vida difícil na América. Chegado a Zamunda, o rapaz e a mãe, que aproveita também o bilhete, deixam-se ser bem tratados - com as típicas mordomias atrevidas que já antes davam graça ao modus vivendi no palácio - e mergulham na experiência africana que se traduz, essencialmente, num rol de momentos musicais. É essa a bengala festiva de um filme que se enche de entradas espetaculares, como a de Wesley Snipes em modo vilão, Morgan Freeman a dar voz e presença a um narrador divino, ou artistas como Gladys Knight e o trio En Vogue em performances de fazer corar o Mamma Mia!. Mas não se fica por aí.
Príncipes em Nova Iorque (que tem muito pouco de Nova Iorque) não só faz regressar aos seus postos todos os atores vivos que integraram o filme original, como se usa de qualquer piada ou desculpa narrativa para enxertar imagens e cenas de um passado glorioso. Dos entusiastas, quem é que não recorda aquela noite num bar em que Akeem e Semmi "entrevistam" uma série de raparigas, à procura da futura princesa? Voltar a ela é voltar ao espírito dos anos 1980. De resto, o tempo parece não ter passado pela barbearia de Queens onde se reúne o gangue dos velhos (Murphy e Hall, com os rostos cobertos de látex). Até os cartazes nas paredes são os mesmos.
Seja como for, o fairy tale já não é o que era. A versão modernaça de Craig Brewer abre-se a um simpático apontamento feminista, esforça-se por piscar o olho a qualquer detalhe que possa remeter para o filme de Landis, mas dá-nos poucas doses de Eddie Murphy. Aliás, os dois protagonistas ficam quase em banho-maria, na pose de figuras protetoras que visam passar o testemunho. E isso não deixa de causar estranheza, desde logo, se tivermos em conta que Brewer foi o realizador responsável pelo aparatoso retorno de Murphy no anterior Chamem-me Dolemite (2019). Acresce que o jovem Jermaine Fowler, na pele do filho bastardo, não é capaz de devolver aquela serenidade cómica com que o então popular ator nos cativou em Um Príncipe em Nova Iorque. Era uma vez Akeem...
Acima de tudo, esta sequela quer ser uma cerimónia informal de renovação de memórias, motivo mais do que válido para divertir o elenco e convidados especiais, na esperança de também divertir o espectador. E está tão empenhada em desviar-se da inevitabilidade da crítica que, a certa altura, num diálogo em que alguém diz que "o cinema americano é o melhor", surge como resposta pronta e cética: "O melhor? O que é que temos para além de tretas de super-heróis, remakes e sequelas de filmes antigos que ninguém pediu?" E confirma-se, "se algo é bom, porquê estragá-lo?" Ah, o humor a tentar fazer das suas...
Produzido pela Paramount, com rodagem terminada ainda em 2019, 2 Príncipes em Nova Iorque era uma das grandes promessas de lançamento na sala escura para este ano, não fosse a pandemia tirar o tapete novamente a esta e outras estreias de calibre popular. Foi só quando a Amazon se chegou à frente com 125 milhões de dólares (cerca de 103 milhões em euros), para a aquisição dos direitos do filme, que se fez luz no ecrã. Caso para dizer que o streaming soma e segue, e é provável que o carinho por uma das personagens mais célebres de Murphy faça render. O clima domingueiro é garantido, e a festa só acaba mesmo nos créditos finais.
Aparte: como é provável que saiba a pouco, recomenda-se a revisitação de Um Príncipe em Nova Iorque, disponível tanto no Prime Video como na Netflix. E depois, fazer uma maratona por outros títulos, à cata de boas lembranças.
48 Horas (1982), Walter Hill
Prime Video
O título refere-se ao número de horas para uma missão. Em parelha com um polícia (Nick Nolte), Eddie Murphy é um assaltante libertado da prisão durante esse tempo para ajudar a apanhar outro criminoso, seu antigo parceiro de delitos. A trama envolve uma quantidade de dinheiro desaparecido, que ele finge não saber onde está, e assim aproveitar a rédea solta para se divertir enquanto pode... Esta estreia de Murphy no grande ecrã foi uma imediata revelação e inaugurou o género do buddy cop movie - o policial de ação com dois protagonistas em conflito de personalidade. Uma notável realização de Walter Hill.
Os Ricos e os Pobres (1983), John Landis
Apple TV+
A primeira colaboração de Murphy com Landis é ouro puro, comédia screwball que vai beber a Preston Sturges e Howard Hawks, com pozinhos do olhar social à Capra. Em Trading Places ele interpreta Billy Ray Valentine, um sem-abrigo que troca de vida com um milionário (Dan Aykroyd, então colega de Murphy no Saturday Night Live), num esquema concertado por dois irmãos donos de uma corretora (os veteranos Ralph Bellamy e Don Ameche). Foi com este enorme sucesso de bilheteira que se tornou um dos atores mais bem pagos de Hollywood, ao mesmo tempo que ganhava uma projeção mundial inédita para um comediante negro.
O Caça Polícias (1984), Martin Brest
Prime Video
Desta feita, Murphy é o polícia e protagonista isolado, um agente de Detroit levado até Beverly Hills por uma série de indícios ligados ao homicídio de um amigo de infância. Vai em férias, hospeda-se na cidade como turista, faz a sua investigação e acaba ele próprio perseguido por outros dois polícias que não apreciam os seus métodos pouco tradicionais. Uma comédia de ação bem oleada que reflete um choque de culturas enquanto explora o delicioso, e já bem moldado, estilo cómico de Murphy. A perspetiva de uma quarta sequela (dispensável) paira pelo menos desde 2014.
O Príncipe das Mulheres (1992), Reginald Hudlin
TVCine
Afastado do jogo do gato e do rato, este é um Murphy mais suave - na verdade, próximo da tranquilidade que o caracteriza agora -, focado no equilíbrio da sua persona. Nesta comédia romântica, que poderia servir de reparo ao sexista Os Reis da Noite (1989), ele assume o papel de um mulherengo incurável que descobre na sua nova chefe uma espécie de alma gémea: ela trata-o exatamente como ele trata as mulheres. Desse efeito espelho nasce a degustação de uma mudança de comportamento.
Chamem-me Dolemite (2019), Craig Brewer
Netflix
O comeback de Eddie Murphy na pele da figura verídica de Rudy Ray Moore (1927-2008) foi um dos grandes momentos de 2019 - ficou só a faltar uma nomeação para o Óscar. Carregado de melancolia, este retrato do pioneiro do humor ordinário que se tornou um fenómeno do Blaxploitation é do mais bonito e genuíno que vimos do ator afro-americano, pronto a desconstruir os códigos do biopic pela expressão íntima de um sonhador exuberante. A prova de que, com o filme e a personagem certos, Murphy é o rei e a lei.