"Entre o que torna a Revolução Portuguesa tão interessante, temos de destacar o MFA e o seu programa de democratização e de descolonização"

Coleção de dez livros sob o mote de O 25 de Abril Visto de Fora mostra como os académicos estrangeiros se interessaram pelo processo revolucionário em Portugal, explica Maria Inácia Rezola, comissária executiva da Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril. Três volumes já foram publicados pela editora Tinta da China.
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Foram já publicados três livros da coleção O 25 de Abril Visto de Fora e estão previstos dez no total até 2026, já ultrapassada o cinquentenário da revolução portuguesa de 1974. Ainda sem falar de títulos específicos, já lá iremos, esta dezena de livros vem preencher uma lacuna?
Sem dúvida. Estamos a falar de livros importantes, publicados no estrangeiro e, por isso, desconhecidos do grande público. Nenhum deles estava editado em português. São livros, escritos por académicos, sobre a Revolução e a consolidação democrática portuguesa. Como disse, serão publicados até 2026, data em que terminam as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, assinalando-se os 50 anos da aprovação da Constituição democrática e o ciclo eleitoral que se encerrou a 12 de dezembro de 1976, com as eleições autárquicas.

António Costa Pinto coordena a coleção, que está a ser publicada pela Tinta-da-China, em parceria com a Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril. As obras resultam de uma escolha do professor Costa Pinto ou existem critérios pré-definidos, por exemplo de origem geográfica dos autores?
Como é habitual neste tipo de iniciativas, procurou-se um curador para assegurar a coordenação científica da coleção. Essa escolha recaiu sobre António Costa Pinto, provavelmente um dos mais internacionalizados historiadores portugueses da época contemporânea, alguém que está em constante contacto com universidades e estudiosos de todo o mundo, e que tem um amplo domínio da matéria. É, aliás, um dos primeiros académicos portugueses a analisar a revolução portuguesa numa perspetiva comparativa, tendo contributos em várias das obras de referência sobre o tema. A conceção da coleção e escolha dos títulos foram da sua inteira responsabilidade.

Prática Democrática e Inclusão Política, de Robert M. Fishman abriu a coleção. O autor é americano. Como se explica o grande interesse do mundo académico dos Estados Unidos pela revolução portuguesa?
A academia norte-americana foi das primeiras a interessar-se pelo tema, em pelo menos duas dimensões. Por um lado, a questão da Guerra Colonial, que, desde os anos 60, interessou autores como Douglas Wheeler, num contexto em que estava em curso a Guerra Fria, em que os EUA travavam ainda a Guerra do Vietname e em que o regime português resistia tenazmente aos ventos da descolonização. Já nesses primeiros estudos se nota um interesse por aquele que será um dos grandes atrativos da Revolução de 1974-1975 - a intervenção e o comportamento político dos militares. De facto, as características da intervenção militar, as modalidades e características originais que vai assumir, transformaram-se em objeto de grande interesse. A isto se somam outras particularidades da Revolução que chamaram a atenção da academia norte-americana, como sejam a reforma agrária ou os movimentos de ocupações de casas e de terras. Uma última nota: muitos destes autores falavam ou compreendiam o português, porque eram latino-americanistas. Isso facilitava o seu trabalho.

Fishman compara Portugal e Espanha. Portugal ter tido uma revolução e Espanha uma transição torna automaticamente mais interessante o que se passou no nosso país?
Estamos a falar de dois países vizinhos, que tiveram longas ditaduras quase em simultâneo e que fazem a sua transição para a democracia também quase em simultâneo. Em Portugal, a Ditadura foi implantada a 28 de maio de 1926 e durará até 1974. Em Espanha, Franco chega ao poder em 1939, ao declarar-se vencedor da Guerra Civil, e mantém-se no poder até à morte, em novembro de 1975. Não vou aqui discutir se foi então que se iniciou a transição espanhola, mas o caminho escolhido pela Espanha foi muito diferente do seguido em Portugal. Apesar de os mais recentes estudos evidenciarem o papel das mobilizações populares na transição espanhola, a verdade é que se trata de uma transição pactuada, isto é, negociada entre as elites do antigo e do novo regime. Em Portugal, pelo contrário, a democracia nasceu de intensas lutas que tiveram lugar nos centros do poder, envolvendo militares e civis, mas também nas ruas, nos quartéis, nas fábricas, nos campos. A democracia foi conquistada, não foi "outorgada". Além disso, em Portugal, em 1974-1975, houve uma revolução de esquerda numa Europa em que, depois do Maio de 1968, se pensava que não voltariam a existir revoluções. E, de entre os múltiplos aspetos que tornam a experiência portuguesa tão interessante, não podemos, mais uma vez, deixar de destacar o papel que nela teve o Movimento das Forças Armadas, o MFA, e o seu programa de democratização e de descolonização.

No caso de Contenção e Transgressão, do politólogo Rafael Durán Muñoz, o facto de o autor ser espanhol traz novidades na análise académica, dada a vizinhança geográfica e a proximidade de experiências históricas?
Este livro também deixa patente as diferentes vias seguidas pelos dois estados ibéricos quando enveredaram pela democracia. Centra-se num aspeto particular: as mobilizações sociais. Mas, apesar das recentes teses historiográficas que dão novo protagonismo ao papel destas mobilizações na transição espanhola, verificamos que o seu impacto e, sobretudo, as suas características, foram bastante diferentes dos dois lados da fronteira. Note-se - e isso é um aspeto particularmente interessante deste livro, em que se analisa a dinâmica de crise do Estado em Portugal sob pressão dos movimentos sociais - que a emergência do MFA enquanto ator político é o fator mais importante durante o período de 1974/75, explica esta radicalização dos movimentos sociais. O MFA, diz o autor, funcionou muitas vezes como uma espécie de "guarda-chuva" protetor dos movimentos e ações populares, impulsionando e / ou legitimando a sua intervenção.

Em As Forças Armadas Portuguesas e o Estado, de Lawrence S. Graham, é possível identificar uma certa excecionalidade da revolução portuguesa na construção da democracia quando comparada com as democratizações na América Latina e na Europa de Leste? A diferença são os militares?
Colocaria a questão de outra forma: uma diferença central são os militares. Tendo em conta que uma das mais recentes intervenções dos militares em política, no contexto do 25 de Abril, tinha sido o "golpe Pinochet" - protagonizado por generais, para instaurar uma ditadura musculada - não deixa de surpreender que em Portugal a ditadura tenha sido derrubada por um movimento de oficiais intermédios - capitães. Esses mesmos capitães que desde 1961 tinham um papel central na Guerra Colonial apresentam-se munidos de um programa que anuncia a descolonização. Esse mesmo programa tem como moto central o desencadeamento de um processo de democratização. Nada mais surpreendente, depois da recente experiência do Chile, e tendo em conta o papel central que os militares tiveram na longa ditadura portuguesa...

Há um novo livro previsto já para novembro. Pode falar já um pouco sobre ele?
O próximo volume, que muito em breve estará nas bancas, é particularmente interessante. Trata-se de uma obra coletiva, com o título Em busca do Portugal Contemporâneo: a Revolução e as suas consequências, coordenado por Lawrence Graham e Douglas Wheeler. Tem contributos muito variados, de autores estrangeiros mas também portugueses, tratando de temas como a opinião pública e os média, forças sociais e poder político, as estruturas do Estado e mesmo as dimensões internacionais da Revolução portuguesa. O livro resultou das comunicações apresentadas em 1979 num colóquio, mas, surpreendentemente, introduz questões de grande atualidade e que, espero eu, irão proporcionar debates muito interessantes. Sem querer estragar a surpresa, procura-se responder à questão se o 25 de Abril foi efetivamente uma revolução, na intenção ou na prática. Da mesma forma, lançam-se pistas muito interessantes para discutir as transformações operadas pela Revolução e o seu impacto a longo prazo.

Estão já identificados os restantes livros ou ainda continua a ser feita a sua seleção?
A lista dos títulos que integram a coleção está fechada. Foi indicada pelo coordenador. Os restantes livros são: Voices of the Revolution. Revisiting the Portuguese Revolution of 25 April 1974, de Paul Christopher Manuel; The Revolution Within the Revolution. Workers control in Rural Portugal, de Nancy Bermeo; Lisbon Rising, de Pedro Ramos-Pinto; Politics in Contemporary Portugal. Parties and the consolidation of Democracy, de Thomas C. Bruneau and Alex Macleod; A History of Postcolonial Lusophone Africa, de Patrick Chabal; e Managing African Portugal: The Citizen-Migrant Distinction, de Keisha Fikes.

Seria possível acrescentar um décimo primeiro livro se surgisse de repente um estudo novo sobre Portugal pós-1974?
Um décimo primeiro, um décimo segundo e por aí fora [risos]. Há, felizmente, um conjunto muito interessante de estudos sobre a queda da ditadura, a Revolução e a instauração da democracia portuguesa. Esperamos também que esta coleção sirva para motivar as editoras a procurarem esses títulos que são desconhecidos dos portugueses e a traduzi-los.

Há expectativa de venda razoável da coleção?
O mercado português é restrito, como sabemos, mas acredito, dada a sua qualidade, que os livros captem o interesse e cheguem ao público, sejam lidos e sejam discutidos

Tem tido reações aos livros que já foram publicados?
Tenho recebido reações muito positivas aos livros. Obviamente que nem todos interessam da mesma forma a todas as pessoas. Mas, de uma forma geral, a recetividade tem sido bastante calorosa e interessada.

Está prevista a vinda de algum dos autores a Portugal para as comemorações?
Contámos com Robert M. Fishman na apresentação do primeiro livro da coleção, que ocorreu na Gulbenkian, no início deste ano, e esperamos poder trazer a Portugal outros dos autores.

Há algum livro de um autor russo, dado o envolvimento da União Soviética no processo revolucionário, na coleção, ou pelo menos chegou a ser ponderada a sua inclusão?
Permita-me insistir neste ponto, muito importante: os livros que integram a coleção são livros académicos. Este foi um dos critérios do coordenador. Penso que o livro a que se refere é um trabalho jornalístico. E existem muitos outros, escritos por jornalistas estrangeiros que estiveram em Portugal em 1974-1975 e escreveram sobre a Revolução. Há livros de jornalistas espanhóis, franceses, italianos, alemães, e mesmo australianos...a lista é infindável.

Continua a haver produção académica sobre Portugal político ou deixámos de ser interessantes?
Sim, continua a haver interesse e produção sobre o tema, em Portugal e no estrangeiro. Só a título de exemplo, posso dizer que tenho contacto direto com uma equipa da Universidade de Sevilha que está a desenvolver um projeto de análise comparativa das transições portuguesa e espanhola. É apenas um exemplo; podia dar muitos outros.

Qual o livro sobre o 25 de Abril que sente que falta ser escrito? Algum ângulo por explorar por autores nacionais e estrangeiros?
É uma pergunta difícil, dada a riqueza e o interesse do período. Há ainda espaço para que se realizem estudos sobre alguns organismos - como o COPCON, o Comando Operacional do Continente, por exemplo - ou algumas das figuras centrais da Revolução e da consolidação democrática. Há um imenso campo por explorar na história da Revolução. Espero que as Comemorações despertem o interesse dos investigadores pelo tema.

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