Entre Braga e Nova Iorque, relembrar Variações

Manuela Gonzaga reedita a biografia do músico que morreu no dia de Santo António, em 1984. O lançamento é hoje, na Feira do Livro, às 19.00, com memórias e Lena D"Água a cantar.
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"De repente estamos a ver uma pessoa exoticamente vestida, a fazer gestos e trejeitos absolutamente estranhos, a cantar um tipo de música absolutamente inqualificável, a fazer melodias e a desafinar e ficávamos estarrecidos." Esta é a memória que Vítor Rua guarda de António Variações. E tão certeira que é. A primeira coisa que se reparava era no visual dele - a barba de cor diferente do cabelo, as calças em balão, os padrões coloridos, a boina, o colete de cabedal, as correntes. Depois começava a música, aquela voz fininha. Estou Além ou Canção do Engate. E era irresistível.

António Variações morreu há 34 anos, no dia de Santo António de 1984. A data será assinalada, na Feira do Livro de Lisboa, com o lançamento da biografia António Variações - Entre Braga e Nova Iorque, de Manuela Gonzaga. No pavilhão da APEL, às 19.00, o livro será apresentado por Vítor Rua e Teresa Couto Pinto. Lena D'Água interpretará dois temas de Variações.

Editada em 2006 pela Âncora, a biografia é agora reeditada pela Bertrand, numa versão revista pela autora e ampliada. Com menos imagens mas com mais informação. Conta a história de António Joaquim Rodrigues Ribeiro desde que nasceu no lugar de Pilar, na freguesia de Fiscal, concelho de Amares, distrito de Braga, a 3 de dezembro de 1944, lugar de onde saiu com apenas 11 anos, num comboio com destino a Lisboa e a um trabalho como marçano.

Manuela Gonzaga ouviu os familiares, os amigos, os que com ele trabalharam, aqueles que o conheceram de perto ou que simplesmente se cruzaram com António Variações e recordam o seu impacto. Todos esses testemunhos são entrecruzados com declarações do próprio músico, retiradas de várias entrevistas, e com descrições das épocas e dos locais por onde ele passou, para que possamos perceber melhor como ele se integrou (ou não) no espírito do seu tempo.

Um barbeiro que já era cantor

"Em miúdo, era surpreendido várias vezes a cantar em frente ao espelho. Era ali que atuava. Tenho sido um cantor de casa de banho, e não foi nada fácil chegar ao palco. Tive de atravessar um corredor muito longo. Dá-me ideia que nasci demasiado cedo. É que se tudo tivesse corrido como devia ser já devia ter aparecido há dez anos. Mas nessa altura ninguém entendia o meu trabalho, a minha conceção estética", disse Variações numa entrevista em 1982. E é que muitos dizem: estava à frente do seu tempo.

António cumpriu o serviço militar em Angola, viveu em Londres (de que não gostou) e em Amesterdão (que adorou). Dessas viagens trouxe um gosto pela liberdade que ainda era escassa em Portugal. Também trouxe conhecimentos de cabeleireiro e das novas tendências da moda. Na verdade, preferia ser chamado de barbeiro a cabeleireiro, até porque gostava muito mais de cortar do que de pentear.

Em 1976 vai trabalhar para o salão de Isabel Queiroz do Valle, o primeiro salão unissexo de Lisboa. "Era rigoroso, não chegava atrasado, não faltava", recorda a cabeleireira. "Era uma pessoa dócil, muito simples, educadíssimo, calmo." Nesse e nos outros salões onde trabalhou, incluindo a barbearia de que foi proprietário, chamada É pró menino e prá menina, no número 70 da rua de São José, António sempre foi elogiado pelo seu profissionalismo. Mas ele queria mais do que isso: "Ser barbeiro serviu para explorar a minha fantasia. Foi a descoberta de um mundo novo, a descoberta de mim próprio [...] há quem diga que vim para a música porque queria publicidade para a minha barbearia. Isso não é verdade. Sempre me considerei um cantor, sempre caminhei sobre um palco, sempre respirei por um micro."

E ainda: "Gosto muito do som da tesoura, mas não há nada que chegue ao som de uma viola, de uma guitarra ou de um violino. Só lamento não ter tido a formação musical necessária e que agora me ia fazer muito jeito."

A primeira vez que atuou em público, conta o amigo Fernando Heitor, foi em meados dos anos 70, na Igreja de Nossa Senhora de Fátima, na avenida de Berna. Um tema com música de António e letra de Fernando, que estava ligado àquela igreja e ali organizava festivais da canção. Em 1976, já António aparecia nas festas do Scarllaty Clube. "Exótico, cantando e movendo-se de forma bizarra." Era sobretudo pela sua aparência que dava nas vistas, mais do que pelas músicas ou pela voz. "Visto-me assim, diferente e colorido, porque me sinto bem. No entanto, nunca me preocupei com a moda. Preocupo-me, sim, com a estética", explicou numa entrevista mais tarde, em 1983. "Nunca me vesti como o faço por provocação aos outros mas como um ato de liberdade para comigo próprio, por prazer."

"Um dia, apareceu vestido de pijama de flanela, de barba pintada, muito extravagante, com aquele fiozinho de voz que tinha. (...) Foi cantar o tema Toma o Comprimido, com uma letra atrevida", recorda Carlos Ferreira, o dono do espaço conhecido pelos seus espetáculos de travesti. António Encenou espetáculos no Scarlatty e também no Trumps.

"É natural que eu faça uma encenação, mas eu sempre sonhei com a música e o espetáculo, e por falta de outro fiz da rua o meu palco. Era uma fuga à frustração de não ser músico e uma defesa contra a timidez que me fazia esconder atrás das portas quando era miúdo e havia visitas em casa", explicou numa entrevista.

Nos anos 77 e 78, teve uma banda de garagem, na Graça, relata Manuela Gonzaga, "com músicos que mudavam todas as semanas e que tocavam onde calhava, ao sabor de convites". Chamavam-se António & Variações. Só mais tarde, conta a autora, já nos escritórios da Valentim de Carvalho, quando se procurava um nome artístico é que David Ferreira terá proposto o corte do &, juntando António ao nome da banda, Variações.

Na rádio, na televisão e por todo o lado

Em 1980, as suas músicas passaram-no programa Meia de Rock, da Rádio Renascença, um programa de música alternativa. Rui Pêgo e António Duarte foram a casa dele gravar a maqueta que haveria de se ouvir na rádio e popularizar o tema O Corpo É Que Paga.

Em fevereiro de 1981 aparece no Passeio dos Alegres, depois de ter entregue em mão uma cassete com as suas músicas ao apresentador Júlio Isidro. Era o programa de maior audiência do país, em direto, ao domingo à tarde. E ali apareceu Variações, de calças aos quadrados enormes, apertadas no tornozelo, a cantar o Toma o Comprimido.

Tinha um contrato assinado com a Valentim de Carvalho desde 1978 mas o primeiro disco tardava em sair. A verdade é que era difícil encaixar António Variações num estilo ou numa tendência musical. Os músicos mais eruditos achavam-no desafinado e criticavam-no por nem saber ler uma pauta. Os músicos populares diziam que ele não tinha consciência política. Para a editora ele trazia tudo na cabeça ou gravado em cassetes, mas não sabia compor nem tocava nenhum instrumentos. Só com muito trabalho de Nuno Rodrigues, da Valentim de Carvalho, foi possível editar, em 1982, Povo Que Lavas no Rio, o primeiro single do álbum Anjo da Guarda (1983), que incluiria êxitos como O Corpo É Que Paga e É Pra Amanhã.

Foi durante a gravação deste disco que Variações disse a frase emblemática que dá nome ao livro de Manuela Gonzaga. Quando o produtor lhe perguntou: António, queres que isto soe como? Ele respondeu: "Entre Nova Iorque e a Sé de Braga." Como catalogar a sua música? Nem ele sabe: "Fui agora lançado como rocker, o que dificilmente se aguenta nesta terra. Confesso que também não me importava se fosse apresentado como folclorista. Não nasci em Nova Iorque, sou minhoto e é por isso muito mais natural que seja folclorista ou fadista. (...) Não quero rótulos, quero ser cantor."

Seguiu-se-lhe Dar e Receber (1984), gravado com os músicos dos Heróis do Mar. António Variações desdobrou-se em concertos.

Neste livro, mais do que a música, que se tornou tão conhecida, podemos ficar a conhecer melhor o António. Exuberante no aspeto mas reservado, discreto no que toca à sua vida pessoal (também ficamos a conhecer Fernando Ataíde e Jelle Balder, os seus grandes amores). Um defensor absoluto da liberdade individual. Trabalhador e completamente dedicado à música, sempre à procura de uma oportunidade para mostrar o seu lado criativo. Apaixonado pela Amália. Muito preocupado com a saúde e com o corpo (não bebia, não fumava). Traído pela doença. Manuela Gonzaga não é definitiva na causa da morte. Mas não hesita quando diz que, depois de conseguir finalmente concretizar o seu sonho, aconteceu tudo depressa demais.

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